domingo, 8 de outubro de 2017

Aprendizados da paternidade


Queridos, depois de quase 1 ano e meio como pai, aqui vai um primeiro texto.
Alguns me perguntam: “e aí, muitos aprendizados?”
E, no geral, não dá para explicar muito e nem sempre me vem à mente tantos dos aprendizados. Nem sempre dá tempo de conversar.
Então resolvi escrever.
Gabi e eu vamos começar a fazer um movimento aqui de partilhar essas experiências e abrir conversas para trocarmos mais.

Leiam com amor. Porque essas experiências, e reflexões sobre as experiências, nasceram num processo visceral de muito amor, a partir de um enorme encantamento pela graça divina em forma humana e um desejo de que as crianças possam estar cercadas do mesmo nível de pureza que elas trazem ao mundo consigo.
Um amor não só pela minha filha, mas por todas as crianças.
Um amor pelo ser humano.

É difícil resumir em poucas palavras, mas creio que posso dizer assim:
a criança vem ao mundo tão pura (ou seja, tão natural, tão aberta às experiências e descobertas, tão confiante em tudo e todos, tão sem traumas) e entra em relação com adultos tão impuros (ou seja, que perderam a espontaneidade, estão desconectados da natureza, de si mesmos, tão desconfiados e medrosos, tão cheios de marcas de dor e de compulsões) que o grande aprendizado da educação é:

aproveite esse serzinho aí para você se recentrar em si mesmo, conectar-se, começar a estranhar a loucura do mundo social, a insanidade mesmo dos adultos, e aproveite para se redescobrir.

Então, olhando para mim mesmo, para minha relação com esse serzinho de luz que veio morar aqui em casa, ao mesmo tempo olhando para as relações dos adultos com suas crianças nas pracinhas, parques e escolas… não é difícil tirar algumas lições, estar atento aos perigos da desconexão, do desperdício da oportunidade e da cotidiana agressão que fazemos às crianças.

Claro, é dessas agressões que vamos tornando-as adultas como nós mesmos, ao invés de nos convertermos em crianças como elas.

As pessoas falam muito de amor. Mas falam pouco das relações. E há sim um sentimento transbordante de amor pulsando em cada pai e cada mãe, que os faz nunca mais dormirem sem estar atentos ao sonzinho vindo da caminha ao lado… mas quando olhamos as relações, aí que nos pegamos em desconexão total… amamos e odiamos… nos descontrolamos porque queremos controlar absurdamente o outro… na hora mesmo da relação, descobrimos em nós, muitas marcas, emoções estagnadas, condicionamentos que trazemos mais profundamente e… é na relação que nos pegamos contradizendo todo o sentimento de amor. E passamos a cometer, sem perceber, uma série de agressões à infância.

Então esses aprendizados da paternidade/maternidade têm a ver com um processo longo e contínuo de autoconhecimento, coragem para jogar luz nas próprias sombras e o desafio de se transformar.

Agradeço muito os grandes aprendizados que puder ter antes de nossa filha nascer, nas rodas de conversa com as pessoas que estão vivendo esse processo que está sendo chamado Educação Viva e Consciente, em especial Ana Thomaz e Ivana Jauregui. Então muito do que vou falar aqui vem sendo dito por essas pessoas que passei a admirar por me parecerem muito coerentes e autênticas em suas relações com as crianças (e, daí, com adultos também).

Verdade. Verdade. Verdade. Essa parece ser uma palavra chave aqui, para dar conta do processo de construção da autenticidade. Adultos autênticos, crianças autênticas. E como elas são autenticamente puras… possamos assim preservar essa pureza por mais tempo.

Então, aqui estamos Gabi e eu produzindo uma lista, umas dicas por temas que são muito comuns nessa relação adulto-criança. Que possa servir como termômetro, sinais de alerta da desconexão.

  • Jogos de poder/chantagens/ameaças: aparecem em frases como “se você fizer isso, eu vou te levar pra casa”, “se você não emprestar isso para ele, ele não vai te emprestar também” e no geral, as ameaças não são cumpridas, o que é, na verdade, uma mentira. Nós, aqui em casa, estamos optando por uma relação sem chantagens, em que quando tenho que dizer não, eu digo não. E a criança respeita porque confia em mim, na minha autoridade, porque não há histórico de mentiras e negociações com chantagens. Não preciso entrar num jogo de poder, nem criar uma regra em que eu finja transferir a decisão para ela. De que adianta a criança fazer o que você quer por medo das consequências que você mesmo ameaça impor?

  • Comparações/competitividade: “tá vendo, João?, a Maria faz assim…” “A Joana já sabe falar tudo, enquanto o Paulo é muito devagar na fala”. Cada pessoa tem uma singularidade, seus pontos fortes e suas fraquezas. Ser comparado só ajuda a desenvolver inveja, não potencializa. Por trás das comparações passo a mensagem de que não aceito incondicionalmente meu filho, não respeito seus processos internos. Uma boa opção para quando uma criança vier te mostrar um feito dela é você olhar verdadeiramente e apoiá-la, em sua singularidade: “você fez bolas laranjas”, “você fez riscos coloridos”, “Você conseguiu subir no banco”, etc. Apoie, celebre, se surpreenda com ela, mas não a nomeie com adjetivos que irão limitar sua autenticidade.

  • Repressão das emoções: "engole o choro!" quantas vezes já ouvimos isso? ou, a criança grita de raiva ou mesmo de alegria, espantada com algo inteiramente novo. O adulto no geral fala: “não grita”. Mas ela está sendo espontânea, e o adulto, em geral, não sabe mais ser espontâneo com suas emoções. E, como o adulto tem ali a autoridade, ela começa a achar que precisa se reprimir mesmo. Procure ver o mundo com um olhar inaugural, assim como fazem os pequenos.

  • Minimização dos sentimentos: quando ela está chorando é comum um adulto dizer: “não foi nada”, ou “já passou”, mas na verdade a criança está sentindo algo, e ainda não passou. Se você tem real empatia talvez você diga: “tá doendo é? diz onde dói.” ou “hum… machucou? tá doendo?” Os sentimentos precisam de acolhimento, não de repressão. Adultos que acolhem seus próprios sentimento vão ter mais facilidade aqui. Mas em geral, a inabilidade em lidar com a dor faz com que os adultos queiram que a criança não chore quando se machuca. Ou se apressem em consolar: “vai passar, vai passar.”

  • Exposição dos sentimentos da criança: isso é muito comum e passa mesmo despercebido, o que mostra como somos insensíveis fazendo com elas o que não admitiríamos que fizessem conosco… “ah, que lindo, ela ficou com ciúme!”, “olhem, ficou com vergonha”.

  • Domesticação/moralização: as crianças são pessoas cheias de potência, intensidade, mas os adultos parecem querê-las domesticadas, num moralismo sem sentido e sem coerência. “empresta, filho. Deixa ele brincar também”, “você já brincou, agora é a vez dele”. Quando a criança está absorta no que faz, claramente não quer emprestar e está num movimento de defesa do seu espaço. E essa exigência de emprestar, dividir traz muita incoerência e desconexão. A criança sente algo como: “estou envolvida e debruçada na exploração desse brinquedo, mas aparece um adulto e me pede que eu interrompa este processo e entregue o brinquedo para outra criança (pois assim ele será bem visto pelos outros adultos)” A criança chora e não quer interromper o seu processo, mas com a repetição desse pedido, ela vai aprendendo a não escutar os seus desejos e cumprir ordens sorrindo”. O mesmo vale para quando os adultos querem resolver os conflitos obrigando que a criança peça desculpas para a outra. “pede desculpas”, “dá um beijnho e um abraço”. Pura convenção sem sentimento real. O que estão ensinando assim? A viver de aparência, a mentir sobre seus sentimentos até que não consigam mais escutá-los. Coisa que a maioria dos adultos faz bem.

  • Exigências e desqualificação: “você já não é mais um bebê”. Temos buscado estar atentos ao tempo, ao desenvolvimento, aos sentimentos. Em geral, quando exigimos mais do que a criança pode dar, isso só tende a trazer frustração, sentimento de rejeição, de inadaptação às expectativas dos pais. Se a criança mais velha está chorando como um bebê, talvez seja mesmo um momento emocional de regressão, numa busca daquele acolhimento perdido, daquele carinho que ela vê as crianças menores receberem. E isso segue vida à fora: já não é mais criança… já não é mais um adolescente… já não é mais um jovenzinho… até que, quem sabe um dia, tarde demais, quando se arrepender da vida de mentiras que teve outra Senhora lhe dirá: “você já não está mais vivo”.

  • Consumismo: excesso de brinquedos, em especial brinquedos com muitas cores fortes,de plástico, pouco naturais ou eletrônicos… nós temos preferido que as crianças inventem seus brinquedos, usem os brinquedos umas das outras,  interajam com a natureza, ela é abundante em brinquedos que as crianças podem explorar e reinventar. Quando as crianças levam muitos brinquedos para as pracinhas, por exemplo, notamos que os choros são mais recorrentes no local. Pracinha é lugar de criança brincar, elas exploram tudo que há por lá, inclusive os brinquedos que as outras crianças levam, mas aí entram num terreno que envolvem as “posses” e os adultos responsáveis não sabem como lidar e vão do extremo de não querer emprestar, porque foi caro e pode estragar ou forçam a criança a emprestar por uma convenção social do que é bem visto pelos outros adultos da pracinha. O resultado é choro na certa. Além disso, brinquedo comprado não se deixa explorar, reinventar, se desfazer e refazer, e essa é a natureza da criança, ela está descobrindo o mundo, precisa mergulhar nele. Se desmontar brinquedo comprado, aparece adulto e fala não.

  • A questão da propriedade privada: “é dele, filho, respeita”, “dá o brinquedo para ele”. Nós optamos por uma relação com os objetos em que não se define a propriedade, mas o respeito por quem está brincando no momento. Então evitamos que a criança aja no impulso de tomar o objeto do outro e, ao mesmo tempo respeitamos o movimento de uma criança defender o objeto com que está brincando quando a outra se aproxima. Dizemos assim: “está com ele, agora”, independente de quem seja o “dono”. Depois de brincar o quanto quiser com o objeto, a criança espontaneamente dará para o outro ou abandonará o brinquedo, ou seja, ela entrega porque verdadeiramente quer dar e, não por uma cobrança dos adultos, algo que é imposto de fora para dentro, hierarquicamente.

  • Desqualificação: “você não sabe isso”, é uma frase normalmente que nasce do medo do adulto, ou da impaciência… outras parecidas: “você não consegue”, “você não é forte pra isso”, "vai cair", "vai se machucar"...

  • Medo: o limite da criança não deve ser o limite do medo do adulto. Mas o limite da sua autorresponsabilidade em construção. Cabe ao adulto zelar pela segurança da criança, mas precisa estar muito atento às habilidades que a criança já desenvolveu e estar atento aos seus próprios medos, cuidando para que a criança possa se desenvolver sem os mesmos medos dos adultos.

  • Rotulações: a mãe com medo do filho machucar a outra criança, o filho ainda está no colo e a mãe vê o menino se agitar para tocar, interagir com a outra criança: "opa, cuidado, você é estabanado, é um ogro, você não sabe controlar sua força..." e por aí vai. Quando a criança cresce mais: "ai, como você é chato!"

  • Importância da clareza: é importante estar claro o que pode e o que não pode, quais os limites, o que o adulto vai deixar e o que não vai deixar de maneira nenhuma… é realmente estranho o jogo de barganha e insistência que as crianças fazem com os adultos que por sua vez vão cedendo, porque no fundo não sabem o que querem, ou o que é importante de verdade.

  • Assepsia, o exagero da limpeza (medo da doença): “não põe a mão na areia”, “não coloca o graveto na boca”, então por que o adulto levou a criança para um lugar de natureza? A lógica da assepsia é uma desconexão total com a nossa própria natureza. Somos seres naturais, desde do início dos tempos co-evoluimos com toda natureza, nosso corpo é adaptado e perfeito para interagir com ela. Quando não estamos nesta relação, adoecemos. Achar que o melhor para as crianças é ficar num local completamente asséptico é uma grande inversão de valores, sintoma de uma sociedade desconectada com sua própria essência. Coloquemos nossas crianças para brincar com a terra, poças, gravetos, folhas, minhocas... sem medo, mas com zelo e afeto.

  • Elogios e recompensas: “muito bem!”, “ai, que lindo!”, por melhor que seja a intenção isso ajuda a criança a fazer as coisas com o interesse de agradar o adulto e começa a ir se desconectando da real fruição autentica da atividade. Quando uma criança faz um desenho e vem te mostrar e você traz adjetivos como lindo, bonito,... a criança passa a sempre querer fazer desenhos que ganhem os seus elogios, ou seja, repetir e procurar os desenhos que esteticamente a fazem ganhar mais atenção e aval dos adultos; perdendo a autenticidade e criatividade de produzir algo inédito a cada instante, independente da estética ou aprovação. Imagine ainda, se você faz esse tipo de elogio na frente de outras crianças (por exemplo, numa escola), rapidamente, as outras crianças também querem receber o mesmo elogio e começam a copiar o desenho que ganhou atenção. Resultado: despotencialização em massa. Se a criança não consegue fazer os desenhos que ganharam elogios, aos poucos, começa a se sentir inferior. 

  • Atitudes diretivas: “faz isso”, “vamos ali”, “olha aqui isso” como se a criança precisasse de um guia para sentir, experimentar o mundo. Muito pelo contrário, se o adulto observar a criança em silêncio vai perceber, através dela, como ele mesmo pode perceber e interagir com as coisas de uma forma nova, original. Nessa repetição de intervenções, aos poucos, a criança vai aprendendo a olhar para o outro (p/ fora) para saber o que ela deve fazer, e vai perdendo a habilidade de olhar pra si mesma (p/ dentro) e sentir o que o seu Ser quer naquele instante. Afinal, sempre intervieram nos processos dela e pediram que ela fizesse coisas que agradasse aos adultos...“bate palminha”, “sorria”, “canta parabéns”.

  • Querer ensinar como faz: calma! O aprendizado tem seu tempo. Não tire da criança a chance de ter o próprio insight. E, ademais, quem disse que o seu jeito é o único jeito de fazer as coisas? Lembra como as crianças se divertem com os embrulhos dos presentes? Um brinquedo de montar não necessariamente precisa ser montado, pode virar um foguete espacial. Espere, silencie e observe a criação da criança.

  • Paixão autêntica: se um adulto tem paixão por algo, que exerça sua paixão próximo da criança, isso é um contágio altamente positivo. As crianças percebem com nitidez quando um adulto está querendo entretê-las ou quando está realmente interessado no que está fazendo. Sua paixão produz uma aura que contagia as crianças. Elas podem se interessar pelo que ele está fazendo e, sobretudo, aprendem a continuar seguindo seus próprios corações.

  • Pressões/conveniências sociais: estar atento ao fato de que a maioria dos impulsos dos adultos tem a ver com o que os outros adultos em volta podem pensar, julgar. Muitas vezes, agimos no impulso de fazer uma “justiça” esperada pelo que eu acho que o outro acha que é certo.

  • Vergonha: a única coisa que deveríamos ter vergonha é de nos envergonharmos. Porque a opinião/o julgamento do outro é importante para mim? Eu não tenho certeza do que eu acredito, desejo, sinto?

Relacionar-se de maneira viva e consciente pode ser uma chave para o autoconhecimento e um caminho de autenticidade.

Esses são alguns dos aprendizados… um processo contínuo. A gente tem muito que conversar.

Esse texto é só pre-texto para uma conversa mais franca, para uma aventura de auto-descobrimento maior.

Estamos sentindo vontade de conversar mais, porque nos dói ver as crianças, tão puras, tão massacradas por tantos estímulos, direcionamentos, faz isso, faz aquilo, não, não, não… num mundo que, com certeza, não se adapta para recebê-las, adultos que estão sofrendo e não sabem o que fazer com elas.

Li uma frase da Ivana no livro dela sobre a Escola Inkiri que dizia assim: "Uma criança não tem que aprender a defender-se ou ser forte neste mundo. O MUNDO TEM QUE APRENDER A VIVER EM PAZ E AMOR."


Um comentário:

  1. parabens pelo texto, muito legal... as vezes somos levados pelo um pensamento coletivo,que a criança nao e um ser pensanti

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