segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Yoga de Rua e o Evangelicalismo



Quero trazer algumas reflexões sobre a experiencia de levarmos para a população de rua a filosofia e a prática do yoga, especialmente quando parece acontecer um certo confronto com uma mentalidade marcada pelo fanatismo religioso, do tipo bíblico, "apegado a letra", que é a marca contemporânea do movimento conhecido como "evangelical". O evangelicalismo se define como "protestante", mas sabemos que há diversas variantes do movimento reformista que não são marcadas pela intolerância e pelo fanatismo irracional e moralista que ganhou corpo em nossa sociedade.

É muito comum nas grandes cidades, a mentalidade religiosa das pessoas que vivem na rua estar fortemente marcada pelo fanatismo religioso. A forte noção de pecado, a consciencia de culpa por se sentirem "afastados" e um grande "apego a letra" quando a conversa caminha para assuntos de religião.

No Yoga de Rua temos vivido isso em algumas ocasiões e hoje ocorreu um diálogo que terminou deixando as pessoas cansadas. "Tirando o debate religioso foi tudo bem", disse um dos participantes ao final do encontro, trazendo-nos um feed-back espontâneo.

Queria trazer algumas reflexões.

Estamos estudando o capítulo sobre mantras do livro Meditação e vida espiritual de Swami Yatiswarananda. Ao final da prática, fazemos esse estudo teórico, que fala sobre a prática da recitação do Om, dos nomes divinos, como caminho para a realização espiritual do yogui. Já tivemos três encontros e hoje o tópico falava sobre a prática de japa em diferentes religiões mundiais.

Yatiswarananda é um monge da ordem Ramakrishna, um mestre que é exaltado pelos seus seguidores, dentre outras características, por ter vivido e realizado Deus em diferentes caminhos espirituais. Defensor do pluralismo, dizia que todas as religiões são caminhos que levam a Deus. Assim, hoje estudamos a pratica da repetição do nome de Deus no Cristianismo (oração de Jesus), a prática sufi (Islã) de repetição do nome de Allah, entre os seguidores da escola de Al Ghazali, assim como a repetição do nome de Buda entre seguidores de algumas escolas Mahayana, e da escola Shin, o budismo japonês.

E enquanto líamos um dos nossos alunos foi questionando alguns pontos e nós íamos respondendo na medida do possível. Ao final do texto ele voltou a questionar o fato de que a repetição do nome pode ser uma prática que "aborrece a Deus" ao invés de agradá-lo.

O estudo durou 37 minutos. E grande parte foi ocupado com a participação de nosso companheiro que em determinados momentos encadeava uma citação a outra falando de diversos aspectos da questão da oração de acordo com a "palavra de Deus", indo além do tema que estávamos conversando e ele mesmo percebendo que seu raciocínio estava se perdendo e saindo do foco, falando da oração dos presunçosos, da idolatria do povo quando Moisés subiu no monte, etc.

Fomos contra-argumentando. Tentando mostrar que existe um mundo para além do tipo de interpretação bíblica a qual ele estava ligado. Ele parecia entender. Mas, de repente, ele retomava os mesmos argumentos como se não tivéssemos saído do lugar. E todos fomos ficando cansados, até o ponto em que silenciamos para ele falar sozinho e se escutar.

Esse tipo de conversa sempre me deixa muito inquieto, muito intrigado. Estou numa pesquisa a respeito. Não é a primeira vez que acontece isso no yoga de rua. Estou querendo aprender com as situações. Então aqui vão algumas considerações:

1) algumas palavras parecem "acender" o furor fanático na pessoa. No caso, o texto em questão começava com a seguinte frase: "O mandamento bíblico “não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão” e a denúncia de Cristo a vã repetição podem ser interpretadas de diversas maneiras."

Apesar do autor começar já convidando para as "diversas maneiras", nosso companheiro só conseguia ler "o mandamento bíblico". Isso parecia "nublar" a sua mente. Então fazer menção a textos bíblicos em nossos estudos é correr o risco de pisar num verdadeiro "campo minado".

2) ele não sabia o significado da expressão "em vão". Ele disse: "vão significa repetição, não é?" Eu expliquei que vão significa "sem propósito", "à toa"... Eu quis explicar que repetir o nome com o propósito espiritual poderia não ser "em vão". Mas ele parece não ter entendido. Ou seja, sua mente parecia estar "ligada no modo fanático" e ele não conseguia pensar "fora da caixa".

3) Ao que parece, o discurso fanático se instala a partir de certa "maneira de interpretar" das lideranças religiosas e as pessoas repetem e repetem sem refletir a respeito do próprio texto. Nem a literalidade da "palavra" é respeitada, uma vez que se abre mão da "palavra" e se adota uma interpretação particular das lideranças, mesmo em contradição com a "palavra". 

4) por diversas vezes nós convidamos para a "diversidade", lembramos que há culturas que não (re)conhecem a Bíblia hebraica, e convidamos a uma prática que ele poderia seguir ou não, mas que poderia trazer benefícios se fosse praticada. Acalmar a mente nas tempestades, retomar a conexão com Deus,etc... ele pareceu ouvir... mas em seguida retomou a "metralhadora" de dúvidas e medo de estar "aborrecendo a Deus".

5) Um dos participantes levou a ele a seguinte pergunta: "quando você faz o Om, você sente que está aborrecendo a Deus?" Nessa hora ele parou para pensar. Não respondeu. E aí lembramos a importância do "sentir", da "experiencia pessoal".

6) Uma característica do fanatismo é a fuga do proprio sentimento. Isso parece ter relação com o fato de que a pregação do tipo fanático sempre reprime o sentir humano como fonte do pecado.

7) Ao final da conversa levamos a seguinte pergunta: "como é que a gente pode se entender aqui?". Nosso companheiro respondeu: "ouvindo a consciencia. Minha consciencia está dizendo que eu deveria escutar mais e falar menos." Ficamos espantados ao ouvir isso! Ele mesmo reconhecendo seu exagero. "Eu estou falando muito e ouvindo pouco" E citou a Bíblia: "falar é prata e ouvir é ouro". E perguntamos: "onde está sua consciencia?" "Aqui - apontou para a cabeça - não está no meu coração porque o coração é fonte de erros." E perguntamos: "E você consegue ouvir sua consciência?" E ele respondeu: "a consciência é Deus dentro de mim. Sempre sabe a verdade". E assim ficamos um pouco em silêncio. Depois de disparar sua metralhadora de verbalidades ele expressa uma dos principais verdades do yoga: "a Unidade entre Deus e a interioridade humana". E admite seu proprio erro de ter ficado falando muito. Encerramos o estudo. No entanto, logo em seguida, recomeçou a falar, e a citar a Bíblia, etc.

8) Depois de tudo isso, e do cansaço que a conversa toda nos causou, fico me perguntando se não seria mais produtivo cortar logo de início quando a pessoa entra do "discurso da ideologia fanática bíblica" dizendo assim: "olha, aqui a gente vem aprender com os mestres do Yoga. É diferente do que os pastores que você ouviu na igreja. Se você quiser o saber dos pastores, vai lá. Se quiser ficar aqui, aproveita para ouvir o que os mestres do yoga têm a dizer." E assim tentar evitar falar tantos verbos em vão.

9) A mente fanática para ser um "tipo de mente" se podemos dizer assim, que o sujeito entra em determinado momento, como que numa frequencia de radio. Sabemos que a mente oscila em diferentes níveis, mais ou menos concentrada, amorosa, alegre, triste, raivosa. Podemos usar várias classificações. E aqui parece haver um certo gatilho que põe o sujeito num complexo intelectual-fanático, e costuma demorar-se um tempo ali, até que possa sair e respirar novamente. A pessoa consegue ter conversas inteligentes, consegue ter insights valiosos, então, subitamente entram as nuvens do fanatismo e ela vira um "repetidor" daquela ideologia. Ao que parece o fanatismo é do tipo intelectual, com raciocínios "lógicos", precisos, uma citação que prova o argumento, num sistema racional lógico fechado em si mesmo. Esse tipo de mente deve existir em todos os humanos, mesmo os que não são dominados pelas malhas da patologia religiosa, mas de todos os "teimosos" e "donos da verdade".

10) Estou refletindo sobre a importância do estudo no caminho do yoga. Porque ali no yoga de rua enquanto fazemos o trabalho corporal, as meditações, parece que tudo vai bem. Os alunos saem com a sensação de paz, os corpos vão respondendo ao longo do tempo, percebemos conquistas. E vamos também estudando, e o pessoal começa a falar sobre o yoga, de como traz resultados práticos, de como está mudando a vida deles, estão mais calmos, etc. E aí, parece que "estamos abafando" e de repente, um conversa dessas... parece que "desabamos". Então sinto que o estudo é importante para haver uma trabalho integrador do processo. O corpo vai se abrindo. A mente se expandindo em diversos aspectos. Mas há terrenos ainda nebulosos... e parece que em níveis muito básicos, por exemplo, a capacidade de interpretação de texto. De ler a frase e entender o que está sendo dito. Uma questão que não é típica do yoga mas do "analfabetismo funcional", uma capacidade da potência humana do pensamento, da reflexão. E fico me perguntando: uma vez que o yoga visa elevar as potências do humano ao seu grau máximo, se não temos um trabalho "básico" a fazer aqui na nossa dedicação ao processo do grupo.

11) A pessoa transita bem em diversas situações da vida enquanto não "aciona" a "mente fanática". Ela toma café da manhã com os espíritas, recebe passe, faz oração e respeita as orações católicas, pratica yoga, repete o Om... mas se entra no terreno do debate intelectual... sente-se culpada por tudo isso. É como uma segunda personalidade, que renega a primeira. Mas que passa, assim como todo estado mental.

11) Na condução de um grupo de estudo, saber interromper as verborragias pessoais, convidar a um silêncio coletivo, parar um pouco, se escutar mais.

12) Reconhecer a limitação da discussão intelectual, dos argumentos e contra-argumentos no campo do convencimento... o estudo do yoga visa despertar sementes num nível mais profundo que o intelectual. No entanto, não desprezar a conversa e a possibilidade de, a partir da potência do pensamento, motivar a vontade e o sentir, e tangenciar, nesse diálogo, a consciencia observadora que a tudo assiste impassível.

- Texto e vivência em construção - 


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