quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Relato de hoje no Yoga de Rua

No dia anterior nos encontramos no comício do Haddad. Rubens e Rodrigo me acharam por acaso e ficamos juntos lá. Depois a Hanna, a Nanda e por fim a Marina e fomos ao final no bar onde o Sávio conquistou seu emprego e trabalha como garçom.

Hoje pela manhã acordei cedo. A Hanna mandou a lista de compras. Ela aceitou fazer o almoço nessas condições de parceria. Eu deixaria as compras na casa dela, e ao fim do dia alguém lavaria as panelas. Deixei minha filha na escola, desci de ônibus ali do Cosme Velho até Laranjeiras e caminhei até o hortifruti. Compras feitas, taxi até a casa da Hanna, porque estava pesado e porque queria chegar rápido e ainda pegar a capoeira de rua. Na São Salvador cheguei ainda a tempo de tocar uma música ao violão no finzinho do café. O Wallace se aproximou e cantarolou comigo: "deixa a luz do sol entrar! abra bem as portas do seu coração, e deixa a luz do sol entrar!" Eu sabia que ele andava afastado, que andava "doidão" por aí e deixei ele se aproximar assim, sem nem olhar para ele, para que nossa comunhão fosse num momento assim, soltando a voz.... E então se aproximou o amigo que toca a flauta doce e ficou tocando comigo, e até mandou eu parar de cantar pra flauta sobressair e ele fez um solo muito bonito mesmo. Não sei mais quem ouviu, o que sentiu, mas estávamos ali em momento criativo musical e amigo.

Dali seguimos para a capoeira e fiz a aula, esqueci de tudo e fiquei curtindo a aula e os aprendizados, os golpes, as rasteiras, a mandinga. Na hora da roda teve um momento muito emocionante para mim. Quando estávamos na roda cantando e um menino jovem se aproximou e entrou na roda e feliz começou a bater palmas e eu fiquei sentindo um tamanhão de emoção que nem sei dizer. Tem muito significado isso. Um menino branco, de classe média, ali chegando junto com a rapaziada pobre, negra. Um novato na capoeira chegando na roda. E sendo recebido com naturalidade, é só chegar. Isso é tão africano! Ninguém pede credenciais, é só chegar. E ele chegou e a roda continuou. E ele sorriu e se entusiasmou ali com o ritmo e o grupo e sei lá mais o que significava para ele, mas eu não parava de querer chorar por essa verdade tão bonita que a cultura popular brasileira transmite. O corpo, o ritmo, a entrega no movimento dos participantes, a roda, a inclusão, e aquelas músicas da ancestralidade e do tempo da escravidão falando em código que sabe lá o que significavam, estratégias de resistência contra o poder opressor. E hoje a gente canta ali na praça e tenta aprender algo desse simbolismo todo.

Tem muita vivência não dá pra contar. O homem que chega doidão, e entra na roda e os professores jogam com ele. E fico com medo, afinal o cara tá doidão e não tá em condições de medir seus atos, e tudo flui no jogo, e numa capacidade de acolhimento, e tudo com música e união e a gente encerra com música e muita alegria. No entanto, em algum momento ali no final, as 10:14 saí da roda e fui ver o celular, me senti um pouco sem energia, sem forças. E fiquei observando o que se passava aqui dentro e fui caminhando pro yoga assim observando esse estado meio "sem vontade", esperando que fosse passar, mas desconfiado que algo estava estranho no "campo" hoje.

Dali saio rápido ainda para comprar uma garrafa de álcool pra limpar os tapetes de yoga, e compro também a erva pro chimarrão do Maurício, gaúcho, que ganhou uma térmica e uma cuia e está todo orgulhoso de poder tomar seu chimarrão. Eu tinha prometido levar o uma erva de minha casa mas esqueci. Quis honrar o prometido e comprei ali no mercado mesmo. Eu gosto de investir nessas causas. Especialmente quando tem valor simbólico.

Chegando no local da prática, lá no parque, a Ivana tava dando aula pra turma dela, estavam fazendo aquelas respirações fortes da kundalini yoga e o nosso pessoal já estava esperando para ocupar o espaço. Encontrei o casal de franceses, que estão se dispondo a ajudar no que for nesse mês que ficam no Rio. E vejo que tem um grupo de umas quatro pessoas que estão sentadas ali em rodinha num clima muito alcoolizado e sabe-se lá se além de maconha alguma outra droga. O fato é que estavam "tortos" da bebedeira e dificilmente conseguiriam alguma coisa com a yoga. Vou lá em cima com o casal buscar os tapetes para que eles possam aprender o caminho e ver um pouco dos bastidores da estrutura material do projeto. Descemos pela trilha íngreme. É tudo cheio de aventura nesse projeto. Começamos a distribuir os tapetes. E fui na rodinha falar com o pessoas "trêbadas de cachaça": "Vocês estão fazendo o que aqui? A gente estava lá na capoeira. A gente começa mais cedo."

Um deles me responde que não é muito chegado à capoeira e que prefere ficar esperando ali.
A arrumação segue. Mostro para a Caru esse pessoal e na hora que olhamos estava lá a garrafinha de cachaça passando de um para o outro. "E aí, Caru, o que fazemos?" Eu pergunto. E ela: "vamos tentar evitar qualquer tentativa de controle."

Sabedoria serena do yoga. Muito bom ouvir isso.

Saio dali e vou limpar tapetes. Olho para um que está acendendo o cigarro ali entre nós e peço para fumar mais distante porque vamos praticar respiração ali. Ele compreende. E a Caru fala algo assim para todos: "se forem fumar fumem bem longe, ou apaguem o cigarro e venham praticar" E em seguida começa a convidar para o silêncio.

A prática se inicia de pé, um balanço para perceber a base, um pé, outro pé, depois olhos fechados um suave balanço para a frente e para trás e o milagres da concentração começam a acontecer. Silêncio começa a se estabelecer, no grupo de cerca de 30 pessoas praticando sob a grande árvore que nos abriga. Um menino (de uns 14 anos) começa a rir. Eu fiquei feliz de ouvi-lo rir, porque me parecia um riso de prazer de entrar no campo, de silêncio, de auto observação, etc. A Caru vai dialogando com ele num jeito bem divertido. Quando ele perguntou algo ela olhou com um olhar de personagem de filme e falou aquela frase de um mestre Jedi: "calma jovem, no momento certo você saberá". É assim com descontração que a Caru vai conduzindo as aulas e acolhendo as diversidades da turma.

Mas dessa vez o clima estava heterogêneo demais. Então dois homens, desses trêbados, que resolveram deitar ali no chão perto dela estavam falando, e ela pediu que eles ficassem e silêncio: "Douglas, silêncio" O homem provavelmente não se chama Douglas e houve uma curiosidade a respeito. Creio que a Caru inventa nomes mas dá uma impressão de uma capacidade incrível de saber o nome das pessoas mesmo sem elas dizerem. O legal é que funciona porque a turma sente respeito. E em geral ela sabe o nome de todos mesmo. Mas dessa vez? Será que ela perguntou? Eu não vi. Era Douglas mesmo? Nunca saberemos.

A prática continuou e lá pelas tantas Wallace começa a ficar nervoso, sabe-se lá com quem e dá gritos: "está feliz agora? está feliz com isso?" Não sei com quem ele estava falando. Mas era um tom agressivo, como que chamando para a briga. Nessa hora a Caru, que estava começando a postura da árvore levantou um braço e chamou: Wallace! Ele se concentrou. Todos nos acalmamos. E o engraçado foi que todos imitaram o gesto da professora e essa virou a entrada do asana. Tem coisa que só no yoga de rua mesmo.

Depois de um tempinho, o Douglas e o João, parceiros de conversa foram embora. Estavam sentindo muito frio (?!) Milagres do yoga. E o silêncio reinou.

Tivemos uma longa fase de relaxamento. Antes de abrir os olhos aquele maravilhoso e único breve momento de certeza de ter dúvida se eu sou eu mesmo. Momento que deve ser cultivado na disciplina do yoga. Na volta, abrir os olhos para ver a família de cisnes negros com filhotinhos passando ao nosso lado. O menino volta do relaxamento todo feliz dizendo: "você fez todo mundo ficar com sono!" Muito lindo ouvir esses relatos espontâneos e surpresos das crianças.

Pra encerrar fizemos uma roda, sentados e praticamos o Om contínuo por um tempo. Ao meu lado o Wallace ao invés de fazer o Om, fez um ressoar de sons, de inspiração em cantos sagrados xamânicos. Foi muito lindo poder acompanhar. Imediatamente me lembrei do texto do Osho que eu tinha lido no dia anterior. O Osho falava do trabalho de Meher Baba, um mestre sufi que atuava em hospícios guiando os masts, pessoas que na verdade não era exatamente loucas, mas que tiveram a experiência do sagrado e se perderam por falta de base, disciplina e de um mestre.

Disse o Osho: "Meher Baba viajava e vivia nos hospícios; e ele ajudava e servia os masts, os loucos. E muitos deles saíram de suas loucuras e começaram a jornada em direção à iluminação."

Quando eu li isso eu pensei: "Nós!"

E ali na roda do Om contínuo ouvindo o Wallace com aquela vontade de expressar o sagrado através do canto... e foi bonito o seu canto... me pareceu tão claro: os loucos de Deus estão aqui, somos nós.
E depois outros relatos ao final da roda: ouvi a voz da minha mãe, uma voz dentro da minha cabeça, o outro voltou à infância, tudo muito lindo... mas fomos interrompidos por uma briga.

Sabe ő cara que entrou doidão na roda de capoeira é eu fiquei com medo dele machucar os professores? Nessa hora da nossa roda ele chegou. Pediu pra falar. Eu disse: senta com a gente. Ele sentou e começou a perguntar o nome das pessoas.  Um a um foi dizendo o nome. Uma roda de apresentação.  No meio da apresentação a confusão.

Sim, o nosso menino tinha subido a trilha lá no alto e parece que jogou uma pedra num caminhão. O moço do caminhão desceu e veio ameaçá-lo. Ele correu de volta para a roda. O moço quase jogou uma pedra ou sei lá o que no menino mas se conteve graças sei lá a que divindade que nos poupou a todos. Fico me perguntando a ligação entre a quase briga do menino lá em cima e a palavra centrada no moço na roda (será que eu estou pensando demais?) "Passou. Já passou". A Caru disse, tentando trazer concentração ao grupo que dizia cada um o seu nome. Mas o grupo acabou se desfazendo e se dispersando. Natural. Tocamos violão, fomos ao banheiro, conversas informais, uma dupla começa a fazer acroyoga no meio da roda... um ambiente bem descontraído e feliz, harmonia para um grupo de 30 pessoas ali no parque.

O menino pra lá e pra cá fazendo "bagunça", tomando banho no bebedouro, o guarda municipal se aproximou. Tudo contornado. Mas, um dia sim de grandes emoções. Até que a Hanna chegou com o almoço. Ela teve dificuldades para trazer. Tinha telefonado para pedir ajuda mas ninguem atendeu. Veio sozinha até o parque e lá embaixo o pessoal ajudou. Comemos. Lemos, a pedidos, o trecho do livro do Yogananda, no curso da refeição. "Quando Deus trabalha com você, é impossível falhar!" Foi a frase que mais se destacou aos meus olhos.

Muita alegria de estar ali. Algumas coisas que eu ainda não entendo bem. As pessoas que chegam só para almoçar. Me pergunto como combinar coletivamente todas as variáveis presentes nesse projeto. Por exemplo a Claudia está voluntariando. E ia levar umas pessoas para comprarem óculos que seriam doados. Eu não sei até onde isso é parte do nosso projeto, ou de outro. Mas ela chegou para buscar as pessoas que iam fazer os óculos. E almoçou com a gente. Isso acontece diversas vezes com outra voluntaria desse trabalho de forminguinhas que ajudam as pessoas. E elas almoçam com naturalidade entre nós. Algo em mim diz que isso ainda não está bem combinado. Quem tem direito de almoçar? Todos. Parece ser uma boa resposta. Ao mesmo tempo há uma pressão para não atrair as pessoas que não tem sintonia com o trabalho, que ficam ao redor da prática se drogando esperando o almoço. Isso vai gerar tensões futuras? Precisamos cuidar disso ou, fazer o mínimo e evitar toda forma de controle.

A boa notícia do dia é que o casal francês, Daniel e Margot, levou os tapetinhos para uma lavagem. Um presente em forma de serviço ao projeto.

Dali fomos levar o pessoal para o projeto que oferece banho. No entanto, a coordenação do projeto nos pediu para, dessa vez, só mandar 10 pessoas, e só aquelas que já tinham ido antes. Isso nos colocou num desafio imenso. Dizer àquelas pessoas que se irmanaram conosco ali na prática que elas não poderiam ir. Algumas sim, outras não. Esse tipo de distinção. Dizer não. E ao mesmo tempo estávamos sensíveis, tentando compreender as necessidade do projeto que é nosso parceiro.

O nosso jovem ficou muito triste de não poder ir. Disse: nunca mais venho aqui. Se sentiu rejeitado. Claro. Caru ficou consolando-o. Dizendo que era só essa semana. O Davi disse ao amigo dele, no seu jeito de poeta underground: "uma porta se fechou mas uma janela vai se abrir e se não se abrir a gente abre uma fenda." E se disse consolado e foi seguir seu caminho. Chegamos na casa terra e o pessoal foi subindo. Um grupo de 13 pessoas chegou. Era para limitar a 10. O que me deixou com o nó emocional foi ver o Davi e seu amigo chegando e sentando num canto, atrás de uma parede, escondidos, para que não os víssemos. Então houve uma roda e expus meu desconforto. A coordenadora quis me ouvir. Quis ouvir porque eu não estava tranquilo. Expliquei a situação e falei do meu desconforto do rapaz dizer que ia embora consolado e se esgueirou para entrar. Muitos julgamentos passam em meu coração: me senti enganado, a mentira, etc. Um voluntário pondera, fala que talvez pudessem fazer um voto de confiança no grupo que estava ali etc., leva a questão para o grupo. Umas pessoas se oferecem para dar seus lugares. Mas são líderes ali e a coordenação conta com eles. Os rapazes "intrusos" ficam quietos. A coordenadora fala que uma solução seria pedir para quem está vindo pela primeira vez ir embora, já que a regra era essa. A Caru participa expondo que pedir pra alguem sair seria muito forte já que as pessoas estavam expressando, a sua maneira, uma vontade muito grande de estar ali. E que 13 é uma boa margem de erro para mais...

Decidiram deixar todos lá. Depois soube que o Jorge e o Rodrigo, "os líderes", não tomaram banho. Volto pra casa com todo esse incômodo e começo meu trabalho pessoal: porque me incomodo? quem em mim se sente enganado? quantas vezes eu mesmo não sou a pessoa que busca burlar as regras, as leis, as rigidezes? se me sinto como que violado, roubado pelo outro, que se aproximou de mim para se aproveitar do que tenho a oferecer, é porque ainda acredito que sou eu quem oferece algo e significa que não entendi ainda que Deus oferece todo o banquete que recebemos durante o dia e eu estou só para receber. Por que me permito me cristalizar nesse lugar policialesco que os proprios meninos me colocam com seu olhar de "vamos burlar as regras que esse cara quer colocar"? A minha mente cheia julgamento faz eles farejarem o policial que eles querem que exista para poderem burlar. Que armadilha!

Medito, medito, medito e dentro de mim vem essa vontade de não estar jogando a favor das regras, mas do amor absolutamente acolhedor com quem quer que seja, seja como for que venha. E que não sou eu que tenho que cuidar se o guarda municipal vai achar ruim ou não. E depois me lembro que nesse projeto temos a chance de integrar as polaridades, luzes e sombras do Real e que Deus está na disciplina e no indisciplinado, na verdade e na mentira, no perfume das flores tanto quanto no cheiro de xixi acumulado há semanas na roupa do moço que não toma banho. O cheiro de Deus. E que é aqui, justamente aqui, que posso alcançar o yoga. Oscilo entre o desrespeito as normas e o respeito as pessoas e aos projetos parceiros. Estamos no dilema da responsabilização de nossas ações. O menino que jogou a pedra no caminhão. Um outro que suja o banheiro. A vez que um roubou a banana do outro e isso gerou uma tensão. De alguma maneira precisamos nos responsabilizar juntos pelo que acontece no tempo que estamos juntos. E lembro que a questão não está tanto na ação, mas na prisão de dentro, em como me encrenco nas emoções, no mundo de sofrimento que crio para mim mesmo. E que não é entre eu e o outro, mas entre eu e Deus.

O fato é que na hora da prática do yoga a gente, de alguma maneira, se garante, confiando no processo do yoga, do mergulho na paz. A gente fecha os olhos ali na roda e medita. E tudo a nossa volta é paz. E as pessoas se integram. Então a gente não limita o numero de pessoas, nem pede credenciais de auto-controle mental. A prática por si só faz o filtro. Quem não é para estar ali se afasta. Quem precisa, se organiza internamente. Ou mesmo, dorme. Um sono mais tranquilo de seus dias. E isso é tudo bom. Então é bom demais estar com as pessoas, tanto na roda da capoeira quanto na prática do yoga. É uma oportunidade maravilhosa de brincar juntos, de estar num caminho de paz juntos. E viver esses momentos. Mas ao mesmo tempo precisamos responder.

Me pergunto, tendo vivido tudo isso... a abertura alegre da capoeira, a abertura serena do yoga... e os mundos fechados a nossa volta. Será que essas pessoas, são mesmo essa espécie de masts. Por que a rua? Que tipo de sensibilidade as deixou, em algum momento da vida, inadaptáveis ao estilo de vida tradicional, de famílias e empregos... o que as afastou da normose? Penso aqui no desejo de liberdade de quem se lança no "trecho"... busca pelo sagrado? Somos no yoga de rua, de alguma maneira, uma aposta de um reencontro dessas pessoas com a essência... com algo mais real e, consequentemente, disruptivo com essa ordem careta do mundo normótico. Dessa forma fico um pouco triste com que arruma emprego, desses de todo dia e tantas horas. Esse sair da rua talvez não seja um grande sucesso. A gente quer sair é da escravidão.

Eu, nesse momento, da escravidão das tramas mentais da minha relação com o Davi. Hoje foi ter entrado de penetra no projeto do banho, semana passada foi a história do roubo da banana, na outra foi um prego. Ele me dizendo: "não consigo seguir regras, não consigo sentir". Há mais de um mês nos conhecemos e ele tem me trazido esse vínculo forte e eu não sei como sair desse enredo. Que tipo de espelhamento ele está me trazendo? Não só ele mas esse grupo "do barulho" que está vindo pras aulas de quarta. Por quê? O que querem de nós? E o que nós que estamos criando essa realidade queremos deles? Quais aprendizados ainda temos a fazer com essas pessoas? E como dar respostas que "nenhum cérebro jamais pensou?"

"Deus é a base de tudo. Nossa fé em Deus fará o amor desabrochar dentro de nós.  Desse amor nascerá o sentido de dharma e de justiça. Então, sentiremos paz. Deveríamos ser tão ávidos em simpatizar com as dores dos outros quanto somos por colocar pomada em nossa mão queimada. Essa qualidade pode ser desenvolvida pela fé absoluta em Deus." Amma

Vamos seguindo que tá só começando...

domingo, 21 de outubro de 2018

Os ramos da videira

Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto, se não permanecerem em mim.

"Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma.


Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados.


Se vocês permanecerem em mim, e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e lhes será concedido.

João 15:4-7

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Notas sobre política em tempos de eleição e violência


Não tenho falado muito de eleições e disputa partidária. Não é meu tema de pesquisa, nem o lugar de minha militância política. Mas alguns alunos têm perguntado minha opinião sobre nosso momento atual, e a angústia que povoa o quadro mental, não só deles mas de tanta gente querida, mobilizou em mim a vontade de escrever expressando algo que possa trazer alguma clareza. Ou mais elementos de confusão, não posso prever.

Meu tema são as emoções, o caminho de autoconhecimento. Então apesar de ter começado pela economia, peço licença para começar pelos afetos. Toda ação tem origem num sentimento. Uma ação violenta, por mais fria e técnica que seja (mesmo nas atuais guerras tecnológicas), tem origem numa emoção de raiva, no sentimento de ódio. E o ódio é um sentimento presente e que veio a público nesse período eleitoral o que vem causando diversas manifestações de violência.

E como em teoria social o laboratório dos cientistas é a história, uma boa fonte de pesquisa é observar os fenômenos de violência, os sentimentos de ódio, na história. Quais são os aprendizados? Em todos os séculos a humanidade, desde que começou o patriarcado, guerreou e escravizou seus inimigos. Um biólogo estudioso da evolução, Humberto Maturana, argumenta que essa mudança de padrão civilizatório (das sociedades matrísticas para as sociedades patriarcais) se deu com base no surgimento de uma nova emoção: o ódio ao inimigo (nas sociedades matrísticas a emoção que, segundo ele, inclusive nos fez humanos, era o amor).

Então a história das sociedades patriarcais é uma história que tem a presença do ódio e, portanto, da violência, em suas entranhas. O que vemos hoje como expressão de ódio ao outro, é algo presente na nossa memória ancestral. Reeditamos hoje, o que viveram nossos antepassados. Sentimento de ódio ao diferente (xenofobia = ódio ao estrangeiro, racismo = ódio a um grupo étnico, homofobia = ódio a si mesmo, e por aí vai...) é a raiz das ações de violência entre os humanos e dos humanos em relação aos outros seres da natureza (as formigas, os rios e as florestas, por exemplo).

Sendo assim, as perguntas que eu faço em debates políticos é: por que produzimos armas? Por que investir tempo e energia na produção de artefatos cujo único objetivo é tirar a vida de um outro ser? Certamente existe ódio em todos nós. E esse ódio está sendo utilizado como capital político. Agora, devemos nos perguntar: Quem odiamos? Como se constrói a imagem daqueles a quem vamos odiar? Então entramos num terreno da construção da ideologia e das imagens sobre o outro... por que, como e desde quando aqui no Brasil se aprende a odiar o negro e as manifestações culturais de origem afro-brasileira, o índio e sua luta por uma outra forma de civilização de respeito à terra, o gay e sua busca por amar sem prestar contas ao moralismo social, o nordestino e seu direito de viver em qualquer cidade do Brasil, a mulher e sua legitimidade em ser pessoa para além do papel social da mãe devotada ao marido e ao lar?

Uma coisa está clara e evidente que o capital político deste momento é uma imitação de movimentos políticos de um passado que não deixou de multiplicar perdas de vidas humanas. E isso é um risco novo no Brasil. Não é um anti-comunismo, do tempo das ditaduras estadunidenses, é um anti-humanismo que nos aproxima ainda mais dos grandes genocídios da história. De onde vem a intolerância? Por que é tão difícil, para além dos interesses econômicos, a construção de uma sociedade que valoriza a pluralidade como valor intrínseco? Me lembro das aulas de ciência da religião, meu professor e orientador, por sinal protestante histórico, alertar para o perigo dos discursos anti-pluralistas e pseudo-cristãos, leituras bíblicas interessadas e sem coerência, afirmando um moralismo junto com o incitamento ao ódio, em nome de um deus de amor... e que essa coisa toda teria consequências...

Outra dimensão creio que diz respeito à mudança nos costumes e uma reação conservadora. O que era de se esperar. A gente está vivendo, e isso é um fato marcante, uma mudança no comportamento social, uma nova geração com uma nova liberdade sexual, e também uma atitude de autoafirmação das minorias que parece que não tem volta atrás. Depois de décadas de lutas, esses movimentos identitários têm conquistado força e voz, não só de luta política, mas de viver cotidianamente um novo estilo de vida... a estética do negro, namoros gays em público, novas estéticas do feminino, e isso vem incomodando aquele pessoal que foi confrontado anos atrás com a pergunta: "onde você guarda o seu preconceito?" Pois bem... esse preconceito estava guardado e escondido. Então com o acirramento da polaridade política ele vem a tona, de forma consciente ou não. Como assim inconsciente?

Vou tentar explicar com um exemplo: imagine uma típica família de classe média brasileira. Em geral se você pergunta se são racistas eles dizem: "não! tenho amigos negros, trato bem a minha empregada negra, deixo até ela dormir lá em casa, etc." Mas essa mesma família, por exemplo, diz assim para um jovem: "que bom que você não teve filhos com aquela namorada negra e agora se casou com uma branca... porque senão ia enfraquecer o sangue da família..." Essas pessoas dessa família não se declaram racistas. Mas então surge um candidato que se declara racista... e faz planos de governo, promete isso e aquilo... as pessoas dessa família sentem vontade de votar nesse candidato... conscientemente pelo seu plano de governo, pelo seu valor ético, por ele prometer caçar os marajás, varrer a corrupção do país... afinal, as pessoas querem mudanças... isso num plano consciente, mas inconscientemente querem um Brasil mais branco, e internamente se rejubilam quando uma sacerdotisa do candomblé ou um mestre de capoeira são assassinados... uma mulher é estuprada, um travesti é espancado... Isso que eu quero dizer que o preconceito inconsciente é usado como capital político nessa mobilização do ódio... é subliminar... pra quem vê de fora é óbvio, mas pras pessoas... elas se sentem fazendo o bem, as mudanças nos costumes está sendo veloz demais para elas. Agem por uma moral que acreditam ser boa... manter o sangue da família forte.

Um outro fato curioso nos debates diários desses tempos pré-eleitorais é a estreiteza temporal das argumentações. Falam de causadores de corrupção, de desemprego, num cenário de 10, 20 anos atrás... ora... a produção de pobreza e desigualdade, o saque das riquezas nacionais por particulares é fato no Brasil desde a sua invasão pelos povos europeus. E o que é a história política do Brasil? É uma história de perpetuação das elites no poder. A colonização deixou sua herança ainda viva em nós. Então os sistemas de perpetuação do poder, que veio das armas do colonizador, a escravização, e a dominação cultural-simbólica permaneceram vivos no Brasil. E daí que a grande surpresa histórica, não só do Brasil mas de todas as sociedades modernas, é que os regimes democráticos não foram capazes efetivamente de dar o poder ao povo; algo aconteceu que manteve a desigualdade e o mando nas mãos de poucos. O coronelismo foi o nome dado a esse sistema em que a política brasileira consistia na ascensão ao poder político, dos filhos e afilhados dos coronéis, através dos votos dos pobres, para manter o poder econômico e militar dos seus pais e padrinhos. Essa fisiologia política, os servos pobres elegem seus senhores ricos, chegou às sociedades urbanas, industriais, mesmo com a universalização do sufrágio, através, sem dúvida alguma, da perpetuação da ideologia (mentalidade) dos ricos que se aliaram aos meios de comunicação de massa (o quarto poder), de forma a manter uma elite que se sustenta justamente a partir do subdesenvolvimento.

Que fique claro que nenhum dos candidatos, nenhum dos grandes partidos que aí estão têm vontade de transformar esse contexto. Na verdade, essa a grande ilusão eleitoral. Por trás dos personagens, a verdadeira estrutura de poder permanecerá a mesma. Rico mais rico, pobre mais pobre. Acho importante desfazermos ilusões de mudança nesse cenário. O Brasil nunca teve governos realmente comprometidos com o desenvolvimento (no melhor sentido da palavra... não só econômico, mas intelectual, artístico, espiritual), nunca teve governos que pudessem criar um ambiente desenvolvido. Então isso me ajuda a ter calma nesses momentos eufóricos. Na verdade a política eleitoral não influi tanto quanto parece na nossa vida. Vai continuar ruim, mesmo se o seu candidato ganhar. Ou, melhor dizendo para nós que optamos em ser felizes apesar dos pesares, vai continuar sendo boa apesar do seu candidato perder. Explicarei isso melhor mais a frente.

Percebam, ouvi isso de uma amiga, a Ana Thomaz. Num ambiente rico, se você é rico é muito bom, e se você é pobre é bom também, porque o meio é rico. Mas num ambiente empobrecido, ser pobre é muito ruim e ser rico também não é tão bom. Então o que a gente precisa é criar um meio social rico... no cenário que temos vivido nesse séculos de exploração dessa terra e de ódio ao inimigo, não tivemos ainda a sabedoria de criar um ambiente bom. E para essa esperança de real desenvolvimento de nosso ambiente humano será preciso uma transformação de paradigma, que só poderá acontecer a partir de um nível muito profundo, das emoções...

Porque o que significa falar de emoções num nível societário? Como as instituições sociais se constroem com base nas emoções humanas? Me lembro de ter tido grandes lições com os livros de um psicanalista que estudou as sociedades... o Erich Fromm. Olhando para o ser humano, da perspectiva de uma falta, de um vazio essencial, e entendendo toda a busca humana ao longo da vida como um meio de suprir esse vazio, Fromm mostra como ao longo da história respostas diferenciadas foram se construindo: a busca de pertencimento ao grupo... os rituais coletivos das cerimônias xamânicas foram uma resposta com base no êxtase, hoje essa busca ganha expressão na sociedade de consumo do capitalismo, consumir para se sentir parte, usar as mesmas roupas, ver as mesmas séries de tv... e a adesão aos nacionalismos militaristas dos regimes totalitários, com seus desfiles cívicos, seus líderes endeusados, seu sentimento de unidade...

E aí ele concluiu que a única resposta madura do ser humano frente ao problema da existência é o amor. E que, na verdade, a gente precisa de uma outra civilização para expressar essa atitude amorosa a si e ao outro, porque nem o capitalismo nem o totalitarismo permitem a possibilidade da vivência do amor maduro. Dialogando com o Maturana, será preciso superar o patriarcado.
Penso nos debates odiosos que vivemos hoje, e em meio a essas emoções li aqui uma frase de uma grande mulher de amor do nosso tempo (talvez comparável somente a Madre Teresa) que é a Amma, a santa do abraço (já abraçou 30 milhões de pessoas e segue a vida abraçando e emocionando as pessoas que voltam a entender o que é o amor e o que elas são depois desses abraços). Amma me diz assim: "Meus filhos, amar verdadeiramente a Amma é amar a todos os seres no mundo, igualmente." Igualmente!! Aí eu vi que a nossa economia e a nossa política não tem nada de amor, e as nossas discussões atuais são como ensaios de uma novela que não vai ao ar.

Outras perguntas poderiam estar sendo feitas nessa hora: ainda precisamos de presidente? Até quando vamos sustentar a profissão do político, com altos salários e benefícios? A representação, se é que ela deva continuar nos moldes atuais, não deveria ser uma espécie de voluntariado? Que inspiração pode nos trazer, nos sistemas políticos futuros, a sabedoria dos anciãos, as rodas em volta da fogueira e os rituais para tomada de decisões coletivas? Os modelos verticais de poder nas instituições ainda fazem algum sentido? As instituições ainda farão sentido numa sociedade que acredita no amor, na potência humana, e na autorresponsabilidade?

Um outro elemento que penso seja importante nessa compreensão das emoções profundas e os acontecimentos políticos tem a ver com a possibilidade de pensar a partir do fato da reencarnação, ou, se preferirem, alguma memória inconsciente que trazemos de uma vida para outra. Se pensar em reencarnação como algo sério é desafiador demais para você tome apenas como hipótese para um raciocínio que pode fazer sentido mesmo em outras cosmovisões. Pois bem, nessas histórias de guerras e perseguições étnicas e religiosas do passado, imagine que um grupo de pessoas sofrem perseguição e são mortas de forma cruel. Passam-se os anos e essas mesmas pessoas renascem em outras nações, outras culturas, outras construções ideológicas, etc... imagine que o trauma de terem sido vencidos em guerras passadas tenha deixado nelas o desejo inconsciente de vingança. Agora com a possibilidade de ascensão ao poder, ouvem essa voz de seu interior: "agora é nossa vez". Ironicamente são capazes de perseguir o mesmo grupo do qual faziam parte no passado. Assim, a crueldade, o ódio parece não ter fim nessa Terra, a não ser que ocorra um processo muito profundo de cura das emoções, que em geral recebe o nome de perdão.

Reencarnacionista ou não, todo o pacifismo se nutre de sentimentos de amor e perdão. Porque parte da compreensão que a crueldade e ódio só tendem a produzir mais ações violentas e mais sofrimento. Assim, a conquista do amor é um processo muito mais profundo do que parece a primeira vista. O amor e o perdão são mais fortes do que o ódio e a vingança. E o que está em jogo não é tanto uma eleição, mas a possibilidade de evolução da espécie humana. Penso em Deus olhando tudo isso, colocando o ser humano nesse jogo enlouquecedor, nesse vai e vem do destino, com o único sentido de despertar uma consciência adormecida: uma consciência que fala de Unidade e Amor. A possibilidade de uma sociedade amorosa se torna uma utopia muito distante quando as gerações se fazem de surdas à sabedoria e parecem precisar viver a dor para aprender.

Um outro elemento que penso vem a partir de uma perspectiva de espiritualidade. Não consigo pensar em política sem essa perspectiva da evolução humana e do nosso lugar no contexto cósmico. E evoco essa perspectiva sobretudo quando penso em nossa responsabilidade em deixar um mundo melhor aqui para nossas crianças... Convido você a lembrar que quem Governa isso tudo aqui é Deusa/Deus Mãe/Pai, e que em Suas mãos está tudo isso aqui que chamamos vida. "Ele é o que tudo governa; Ele é o que tudo conhece, o que tudo permeia, o Protetor do Universo, o Eterno Governante - nenhum outro é capaz de governar o mundo eternamente." (Svetasvatara Upanishad) Então respiremos, respiremos, façamos sim o que cada um sente como o seu chamado, seu dharma, sua responsabilidade político-social-ecológica-etc, mas sem pânico, sem medo, nem da energia atômica, nem da violência política, nem mesmo da amiga morte, para que possamos transmitir às nossas crianças o valor mais fundamental de todos... a confiança na vitória do Amor, no determinismo absoluto do Bem Maior.

Qualquer que seja a circunstância exterior, a Luz de dentro pode brilhar, florescer, despertar. Lembremos que estamos aqui, nesse planeta amado, cumprindo alguns segundos da nossa vasta existência cósmica, um tempo breve como o da fina gota d'água que desce espiralando até a terra em dias de chuva, e que nas vitórias e nos testemunhos, nos períodos de reinados e de exílios, no alto dos montes ou no vale de sombras, sempre será tempo de despertar a luz de dentro, a conexão com o divino e de fazer o bem. Que nossas filhas e filhos possam se iluminar/autorrealizar/unir a Deus... elas/eles são luzes, merecem herdar o melhor mundo que possamos lhes oferecer... mas não somos o Onipotente, saibamos reconhecer nossos limites para ensinar o valor dos limites, o melhor mundo que podemos lhes oferecer é o calor de nosso afeto, e o som da nossa risada, mesmo nas condições mais difíceis... e... confiemos que elas e eles tem e terão a criatividade risonha e divina de fazer poesia-amor-e-arte com toda maldade e loucura que possam lhes apresentar.

Tudo é parte do real. A maldade e a bondade... e Nada é Real, lembra que isso aqui é só um sonho. O sentido da vida não é vencer no mundo... é vencer o mundo. Então respira, estufa o peito e bora seguir confiante que ninguém pode matar, nem roubar o que é precioso e verdadeiro em nós. Essa é a lição de nossos ancestrais... dos mais diferentes povos... de todos os exílios e sacrifícios, nos desertos ou nas florestas... o valor que eles todos nos transmitiram é esse: eleva o olhar, vê do alto, ama, trabalha, espera, perdoa...  vitória da luz!!

André, Rio de Janeiro, 9o. dia do Navaratri, 2018.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

OS FRACASSOS DEVEM ESTIMULAR A DETERMINAÇÃO


Até os fracassos devem atuar como estímulos à sua força de vontade e ao seu crescimento material e espiritual. Ao falhar em algum projeto, é proveitoso analisar cada fator da situação para eliminar todas as possibilidades de que no futuro você venha a repetir os mesmos erros.

A época do fracasso é o melhor tempo para plantar as sementes do êxito. O golpe das circunstâncias pode contundi-lo mas mantenha a cabeça erguida. Tente sempre uma vez mais, não importa quantas vezes tenha falhado. Lute quando achar que não pode mais lutar, ou quando achar que já fez o melhor possível, ou até que seus esforços sejam coroados de êxito. Uma pequena história esclarecerá esse ponto.

A e B estavam lutando. Depois de muito tempo A disse para si mesmo: "Não posso continuar mais". B porém pensou: "Só mais um soco." E, desferindo-o, conseguiu derrubar A no chão. Você precisa ser assim; dê o último soco. Use o indomável poder da vontade para superar todas as dificuldades da vida.

Novos esforços após o fracasso acarretam verdadeiro crescimento. Mas esses esforços precisam ser bem planejados, recarregados de crescente intensidade de atenção e de força de vontade dinâmica.

Suponhamos que você tenha fracassado até agora. Seria tolice desistir da luta, aceitando o fracasso como decreto do "destino". É melhor morrer lutando do que abandonar seus esforços enquanto ainda há uma possibilidade de realizar algo mais; pois, mesmo quando a morte vier, sua luta precisará ser reiniciada em breve, em outra vida. O sucesso ou fracasso são o resultado justo do que você fez no passado, somado ao que faz agora. Portanto, você deve estimular todos os pensamentos de sucesso de vidas passadas, até que eles estejam revitalizados e capazes de sobrepujar a influência de todas as tendências ao fracasso em sua vida atual.

 A pessoa bem-sucedida pode ter enfrentado dificuldades mais sérias do que outra que fracassou, mas a primeira se condicionou para rejeitar o pensamento de fracasso em quaisquer circunstâncias. Você deve transferir sua atenção do fracasso para o sucesso, da preocupação para a calma, da divagação mental para a concentração, da inquietude para a paz e da paz para a divina bem-aventurança interior. Quando se alcançar este estado de Autorrealização, o objetivo da vida terá sido gloriosamente cumprido.
🕉

Paramahansa Yogananda
extraído do livro: A lei do sucesso: como usar o poder do Espírito para criar saúde, prosperidade e felicidade


sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Em resposta a uma reclamação de um(a) estudante.

Recebi na Universidade uma reclamação vinda pela Ouvidoria. Não sei quem fez. Mas precisamos responder. Defendo o direito do estudante buscar meios de ser ouvido quando se sente desrespeitado e, reconhecendo a cultura de poder hierárquico existente nas instituições do antigo paradigma, no qual ainda vive a Universidade, compreendo que seja legítima essa busca de um canal de garantia de direitos. Meu coração não deixa de se entristecer, uma vez que procuro estabelecer vínculos de afeto, respeito e proximidade com as turmas. Mas nem tudo é perfeito. Sei que não amei suficientemente meus alunos, e já me coloco a pergunta auto-crítica que aprendi a me fazer com Mohandas Gandhi: "onde estou errando para o meu aluno não confiar em mim?" Então vou procurar oferecer nessas linhas a melhor resposta, vinda do mais profundo amor e respeito de meu coração humano que se fez professor por alguns anos até aqui.

A reclamação dizia que o professor André não segue a ementa e, em disciplinas obrigatórias, oferece práticas de yoga, constelação familiar e biodanza. Diz também que procurou o Centro Acadêmico e que a pessoa do CA disse que não adianta reclamar, que muitas reclamações já foram feitas e que nada resolveu.

Assim, vou começar a responder pelo final, pela resposta que lhe foi dada pela pessoa do CA. Em 9 anos na Universidade nunca fui procurado pelo CA para me trazer críticas, sugestões, ponderações, pedidos representando os estudantes. Na verdade venho nesses anos, recebendo muita aprovação por parte dos estudantes, por minhas aulas serem alegres, dinâmicas, pouco tradicionais, que "quebram a rotina", relaxantes, que trazem paz, que eu escuto os alunos e que os alunos aprendem com facilidade, e retém o conhecimento por anos, porque foi um conhecimento transmitido de forma significativa e afetiva. Longe de ser perfeito, recebo também ao final do semestre, nas avaliações das disciplinas, sugestões e críticas feita pelos estudantes que me permitem ir tentando melhorar. Mas do CA, nunca uma palavra.

Recebi uma única vez uma reclamação oficial vinda pela Coordenação do curso. Vou contar o que houve. Uma aluna se incomodou por eu usar um capítulo de um livro que tinha a palavra "vagina" no título. O livro tinha dados científicos, pesquisas científicas com animais, discutia questões relacionadas a cultura do machismo, a violência contra a mulher, mostrava por exemplo, como o estupro se tornou em nossa civilização uma arma de guerra uma vez que abala a auto-estima dos povos inimigos, por gerações. A disciplina era de metodologia científica e eu quis aproveitar e trazer reflexões socio-políticas atuais (a questão da mulher) enquanto aprendíamos sobre método de pesquisa nas ciência, ratinhos de laboratório em que eram aplicados certos hormônios, grupo controle, etc. Entendi que seria uma boa oportunidade de ampliar o interesse da turma com essa inter-disciplinariedade. Mas o incômodo foi grande, a aluna não falou nada comigo, e foi reclamar na coordenação. Nunca mais usei o livro que, no entanto, recomendo a todos: "Vagina: uma biografia" de Naomi Wolf.

Além dessa reclamação, nunca mais tive nenhuma reclamação oficial. Portanto, não compreendo o que se passa, que ruído de comunicação, ou que falta de comunicação aconteceu ao longo desses anos para a pessoa representante do CA responder da maneira como fez. Reconheço como membro do corpo docente que os estudantes tem muitas demandas que não são atendidas, reclamações que não dão em nada, e sou sensível a essa estrutura de poder que realmente pesa conta o lado mais fraco. Onde dou aula, as condições de vida dos estudantes está bem comprometida. É um bairro caro, e não temos moradia estudantil, nem restaurante universitário. Nossos estudantes estão realmente fragilizados.

Com relação as disciplinas que lecionei no semestre em que foi feita a reclamação, tentarei me explicar aqui. Eram duas disciplinas: Introdução ao trabalho acadêmico (que hoje não existe mais) e Corpo e Movimento na Educação.

A única vez que me lembro ter feito uma aula citando o apreciável método terapêutico desenvolvido por Bert Hellinger foi numa das turmas de Introdução ao Trabalho Acadêmico, para os alunos do primeiro período. E houve um contexto muito específico. Passei uma atividade de estímulo a escrita. Para isso usei o seguinte dispositivo de inspiração: pedi que escrevessem num formato de carta a seus pais, sobre o que estavam aprendendo na Universidade. Os conteúdos das disciplinas, o saber acadêmico em confronto com o senso comum, etc. Já fiz isso outras vezes, inspirado por outros professores que tive. Escrever para um leigo, nos estimula a explicar melhor nossa ciência. E assim os estudantes escreveram. No entanto, minha enorme surpresa foi o conteúdo das cartas. Em mais de 90% das mesmas os estudantes não falaram de conteúdos acadêmicos. Mas de suas questões emocionais. Das dificuldades que estavam vivendo em uma nova cidade, com poucos recursos financeiros. E a grande maioria falava de suas dores emocionais nas relações com seus próprios pais, das histórias de abandono, de abuso, de violência. Uns que fingiam perdoar, outros que nunca perdoariam. Alguns alunos relataram emocionantes histórias de perdas, de seus pais, de seus irmãos, de seus cachorrinhos. E alguns falavam da sua vontade de cometer suicídio. Outros não conseguiram escrever para um de seus pais, ou o pai, ou a mãe. E vinham até a mesa emocionados e me falaram que não conseguiram. Eu, sem saber exatamente como reagir, disse que tudo bem, que entregassem em branco, mas que não deixassem de entregar, uma vez que entregar em branco ao menos seria um movimento que poderia trazer algum efeito.

Depois de ter lido as cartas passei a semana sem saber exatamente o que fazer. Senti que precisava dar alguma resposta a eles que haviam me confiado aquelas confissões e que tinham vivido aquela experiência. Aliás, alguns alunos pediram para me mostrar que fizeram mas que não queriam que eu lesse!

Sou um educador! Diante de uma turma que me traz esse movimento carregado de dor, me sinto na obrigação de minimamente oferecer algum acolhimento. Então preparei no quadro algumas citações de Hellinger e apontei para a constelação familiar como uma forma de inspiração para lidarem com tantos conflitos familiares.

Yoga e Biodanza nunca ofereci nessa turma de Introdução ao Trabalho Acadêmico. Nas turmas de Corpo e Movimento, busco cumprir a ementa com a possibilidade de, além das reflexões teóricas necessárias a formação do educador, oferecer espaços de vivência de atividades corporais com vistas a capacitação dos profissionais da educação que vão utilizar o corpo e serão, em geral, levados a atuar sobre os corpos das crianças e jovens nas escolas. Ao longo dos anos lecionando na pedagogia sempre ouvi as reclamações dos estudantes de que as aulas são muito teóricas, que eles tem pouca prática, pouca possibilidade de vivenciar o que estão aprendendo. Imagine uma turma de corpo que se fale sobre o corpo, se critique a escola pelo seu tradicionalismo no aprisionamento dos corpos nas carteiras dentro das grades da escola, e essa disciplina sendo dada sem que se saia da cadeira! Então a gente precisa buscar coerência. Nós começamos a oferecer atividades, dinâmicas, oficinas, práticas corporais na disciplina. Chamamos convidados de outras áreas: dança, biodanza, capoeira, temos práticas de jogos e esportes, consciência do corpo, do movimento, yoga, teatro, método feldenkrais, danças circulares, brincadeiras, exercícios de ritmo e o que mais a gente consegue criar em conjunto com a turma e com os convidados que conseguimos trazer. Gostaria de poder oferecer mais e estamos em constante procura de profissionais na cidade de Angra dos Reis que possam fazer parceria e vir, gentilmente, oferecer um pouco de seus saberes e práticas. Além de oferecer uma discplina optativa para aprofundar nas vivências.

Creio ter podido compartilhar um pouco das experiência e que podem talvez chegar como resposta aos estudantes. Estou absolutamente aberto ao diálogo com colegas e estudantes para aprimorar mais e mais nosso trabalho.

Um abraço

André

Aurio Corrá“A música me ensinou a ser perseverante, com dias, meses, anos de estudo. Esta prática me fez descobrir que precisamos de muito pouco para viver quando temos algo na vida que verdadeiramente amamos. Esta visão torna possível o enfraquecimento da competição social, e, por conseguinte, toda a minha ansiedade se desfez. Foi só neste estado que se abriram, de forma mágica, os meus caminhos da composição e criação”.

domingo, 22 de julho de 2018

Uma meditação guiada

Essa é uma meditação guiada. Você pode ler permitindo uma pausa que achar adequada entre uma linha e outra. 

Procure sentar-se de forma confortável com a coluna alinhada.
Deixe os braços e as mãos na posição que você preferir.
Feche os olhos e, em silêncio, comece observando a sua respiração.
O ar entrando.
O ar saindo.
Então leve sua atenção para o lado direito do seu corpo. Perceba todo o lado direito.
Agora leve a atenção para a região à direita do seu corpo, a 30 cm de distância... perceba toda essa região que está além do corpo, nessa distância de 30 cm.
Então expanda mais ainda, levando a atenção à direita até 1 quilômetro..
Então expanda mais a atenção numa distância de 10 mil quilômetros.
Fique aí por um tempo com uma sensação de quase infinito indo em direção a direita. Você quase abraça a Terra com a expansão da atenção.
Então conecte-se com a respiração e recomece pelo lado esquerdo, observando o lado esquerdo do corpo.
Expanda a atenção para a região além do corpo, à 30 cm do lado esquerdo.
Então expanda ainda mais alcançando 1 km.
E agora 10 mil quilômetros a sua esquerda.
Agora perceba a união da esquerda com a direita e você abraça todo o planeta.
A Terra possui mais de 12 mil quilômetros de diâmetro. Nesse momento seu pensamento abraça e envolve todo o planeta. Emita pensamentos de paz, desejo de harmonia para todos os seres. Atraia com seu pensamento amoroso toda força divina para todos que vivem aqui, em cada uma das regiões do planeta.
Agora leve sua atenção ao topo da cabeça.
Então, fazendo o mesmo exercício, conduza a atenção a uma distância de 30 centímetros acima da cabeça.
Expanda agora para 1 km acima de você.
E então 1000 kms.
Acima de mil quilômetros você chega no espaço.
Leve seu pensamento para o espaço infinto. Observe as estrelas no espaço infinito.
Medite no infinito e no vazio que há entre os astros.
Então afirme internamente a sua unidade com o infinito, com o Ser. [por exemplo, você pode dizer]: Eu sou o Ser. Eu sou infinito. Eu o Pai somos um. Sou feito(a) da Mãe do Universo.
Tome consciência que, mesmo que na vida cotidiana você mantenha uma personalidade e uma mente limitada, você pode retomar, a qualquer momento, essa lembrança de sua natureza infinita.
Perceba o vazio e o espaço vazio que há em seu próprio corpo.
Leve sua atenção para o seu corpo e perceba-o igualmente composto de estrelas e de vazio.
Uma divindade egípcia chamada Nut, conhecida como a Mãe dos deuses, era representada formando o arco da abóboda celeste com seu corpo repleto de estrelas.
Traga essa imagem para o seu próprio corpo. E perceba a luz de estrela em cada átomo de seu corpo. E perceba o vazio aí em você.
Medite no vazio.

Antes de terminar a meditação, volte a observar a respiração. E agradeça.
Lembre-se que mesmo voltando a experiência cotidiana, de personalidade limitada, você pode manter a consciência de sua real natureza.



sábado, 14 de julho de 2018

Yoga de Rua visitando o Yoga na Maré

Não tem como relatar essa experiência.
Cada um teve vivências muito profundas e de amplitude.
Passear pela cidade, metrô, ônibus, olhar a cidade com outros olhos, junto a equipe do yoga de rua...
Visitar uma favela, uma região desconhecida, famosa e misteriosa, ver de perto, ouvir os sons, caminhar pelas ruas, ver um pouquinho os diferentes mundos que convivem ali no mesmo espaço.
Conviver, conversar, passar tempo junto, ver gente nova, ver o velho ao lado de gente nova, comer junto, sentir medo junto, dar risada junto, silenciar junto e depois voltar diferente do que foi.
O galpão, a prática, quase 50 pessoas num círculo, a meditação, os desafios das posturas, os sons ao redor, o relaxamento, a música calma de fundo, a vibração de amor emanada por todos.
Yoga de rua: um oásis no deserto.
Yoga na maré: uma clareira na floresta.
Os antigos sábios da Índia que, se afastando da correria da cidade, iam a um lugar à parte para mergulhar na sutileza, no silêncio, e desvendar a ciência que observa o corpo e a mente em profundidade. Anseio de libertação, amor, paz, integração. Meio: retirar-se, simplicidade, observação, dedicação.
Estamos no caminho.
Alguém quer falar algo após a aula? De repente um senhor se levanta e vai agradecer... e inicia uma linda oração pedindo, emocionado, bênçãos a todos... a religião dele? Ninguém perguntou. Só agradecemos. O jeito de orar lembra o pentecostalismo cristão. Após uma aula de yoga!!!! Isso é absolutamente coerente com o ecumenismo natural do yoga. A expressão espontânea de uma devoção sincera! Isso é uma aula para todos. Yoga vem da Índia. Sim. Seus praticantes no ocidente, ao longo do caminho de prática, vão conectar-se com seus sentimentos. E não precisam necessariamente aderir às religiões e rituais indianos. Isso é uma bela quebra de paradigma para a forma convencional como a penetração do yoga costuma se fazer aqui. Que maravilhoso poder viver, ali numa favela carioca, essa potência da presença do Yoga em diálogo com a expressão da cultura popular! Que outras formas de expressão e potencialização de nosso povo o yoga poderá nos proporcionar! Despertar! Despertar não é copiar. É deixar vir o que tem dentro. E assim vamos.
Humanidade: mesa de café da manhã abundante após a prática. Partilha de alimentos. Oferenda de amor, comida, roupas, vontade de conversar e aconselhar os meninos que moram na rua. Um deles, antigo morador da Maré!
Yoga na Maré é um projeto lindo! As aulas são abertas, gratuitas, quartas e sextas. Sexta-feira, especialmente, as 9:30 no galpão das artes da Maré, recebe muitos visitantes, o que é maravilhoso nesse intento de aproximar as pessoas da cidade.
Depois da comilança a Ana Olívia, professora responsável pelo projeto, nos levou para conhecer outros espaços de aula e fomos sentindo as ruas, a movimentação, a inspiração de tantos projetos que se destacam pela inclusão social com consciência crítica. Gente que promove ações de profissionalização e expressão artística e que pensa a sua realidade, o protagonismo histórico das mulheres, as causas evidentes da guerra particular entre polícia e tráfico, a estética da mulher negra, etc.
É muito emocionante ouvir (num dia sem tiroteios), os relatos do que ocorre quando ocorrem os confrontos e de como essas instituições ao invés de fechar, abrem suas portas para acolher as pessoas que passam na rua e encontram ali proteção. E de como as aulas podem continuar, mesmo com a guerra lá fora.
E assim o Yoga na Maré vai construindo e somando com outros projetos locais, uma presença territorial. Juntamente com as pessoas que tem ali seu espaço de vida, de trabalho, e que encontram, naquelas horinhas ali na "clareira da floresta", horas de bem estar, de paz interior, de afetos... vai-se construindo um lugar-referência, concreto e simbólico para a Maré. Algo vai se formando juntamente com as pessoas.
Nossos alunos tiveram sorte e pegaram uma festa de encerramento de uma turma do curso de espanhol. E mais festa e mais comilança. E seus olhos brilhavam porque viam ali naqueles jovens, naqueles projetos, perspectivas de investimento na vida que eles, uma vez na rua, perderam. E, quem sabe, ali, nesse encontro podem redescobrir projetos de vida. Um dos meninos, revisitando a favela onde morou, pode entrar em prédios que nunca havia entrado. Viu a favela por um ângulo que ele não viveu. Viu que tem um outro mundo possível, paralelo ao que ele viveu antes de ir pra rua. (Quem saberá os frutos que esses passeios do Yoga de Rua vão dar? Estamos querendo passear mais. Dia 22 vamos estar juntos de novo na Praia Vermelha num aulão do Yoga na Maré...)
'Que possam existir mais Olívias nesse mundo, espalhando amor e fomentando esse amor na gente", disse uma das participantes.
Uma linda frase que expressa a gratidão e a amizade que está se formando ali entre aqueles alunos e sua professora. Uma frase que se repete há milênios no universo do Yoga. No Katha Upanishad, no famoso diálogo entre Naciketas e Yama, o deus da morte, este lhe diz:
“A verdade sobre o Ser não pode obter-se através de alguém que não percebeu o Ser como sua própria natureza essencial. A mente não pode revelar o Ser. Para além das dualidades, aqueles que percebem a si mesmos em todos os seres e a todos os seres em si mesmos, auxiliam os demais a terem a revelação do Ser”.
E termina elogiando a escolha de renúncia do jovem, que abriu mão de muitos prazeres efêmeros que lhe foram oferecidos em troca de uma felicidade perene que sentiu poder encontrar ali naquele ensinamento:
"Sábio eres, Naciketas, pois estás em busca do Ser. Que possa haver mais buscadores como tu!”
E assim, o que aquela senhora, interpretando o sentimento de todos nós, está dizendo à professora é: "Obrigada por estares sinceramente em busca do Ser. E a sua busca te trouxe aqui. E a Sua busca nos inspira também. Que isso se multiplique!"

domingo, 8 de julho de 2018

A Universidade e as exigências das novas gerações

"Se desejardes escutar verdadeiramente, escutai não só o que diz o orador, mas também os barulhos do mundo; escutai os clamores do coração humano, escutai o caos, escutai vossa própria aflição, vossa incerteza, vosso desespero. Se soubésseis escutar, serieis então capaz de resolver o problema. Se escutardes vossas agonias — se as tendes, como a maioria dos entes humanos — encontrareis a solução, estareis livre delas. Mas não sereis capaz de escutar nada, se disserdes: "A solução deve corresponder ao meu prazer, ao meu desejo" — pois nesse caso só estareis escutando a voz de vossos próprios desejos e de vosso prazer." J. Krishnamurti

Nova geração de estudantes 

Com a chegada de um novo perfil de estudantes na Universidade, vejo-me, como professor, mobilizado a um verdadeiro renascimento em minha profissão. Num momento em que achei que estaria estabilizado no meu perfil de formação, uma turma nova me trouxe um conjunto de exigências que me fez voltar a estudar e a pesquisar e dialogar com colegas, formas novas de trabalhar.

Esse texto pretende iniciar uma reflexão. Não é a palavra final, até porque os novos tempos exigem movimentos em direção a um campo de diálogo que ainda está por ser criado. Conceitos antigos para o mundo antigo. Conceitos novos para o mundo novo. Os impasses atuais estão nos exigindo a busca por novos paradigmas.

Penso em destacar dois grandes grupos de transformação da nova geração e a partir daí repensar a nossa atividade na universidade. O encontro com esses novos jovens de 17 a 20 anos que têm chegado a universidade traz-nos uma interpelação a partir de uma dupla perspectiva: uma nova militância política (novas bandeiras, novo sentimento, nova exigência de coerência, novas estratégias de ação militante) e uma nova visão do ser no mundo (nova relação entre o pensamento e a realidade, nova exigência de coerência no sentido da profissão, novas necessidades de busca de sentido, nova compreensão do seu mundo psíquico).

100% Militante

A nova militância política é marcada pelas bandeiras do multiculturalismo e a concepção da valorização da diferença. Em nosso caso, a questão negra (a afirmação do ser negro), a questão da mulher (e toda a nova sensibilidade para que a sociedade se dê conta da onipresença da violência contra a mulher) e a questão lgbt (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros e todo um universo de definições das possibilidades de identidade e opção sexual). 

Os inimigos: o racismo, o machismo e a homofobia. Ou seja, ainda que se reconheça os determinantes econômico-estruturais das desigualdades, o inimigo é um fenômeno da cultura, a questão do preconceito, que aparece no discurso, no comportamento, não só na elite econômica, mas em todos. Essa militância ganha um novo sentimento de combate que se faz 24hs por dia. Há uma exigência de coerência. Todo o cuidado com a fala (o politicamente correto) é pouco. Qualquer deslize pode revelar o seu racismo, o seu machismo, a sua homofobia que estava escondida. "Não passará!" é a atitude guerreira permanente dessa nova geração. 


Toda hora é hora de luta: "Por mim e por meus irmãos." Esse sentimento de pertencimento que faz de um negro porta voz de seus irmãos negros na luta cotidiana contra os grandes e pequenos atos de racismo, de uma mulher porta voz de todas as mulheres violentadas ("um contra todas") e o mesmo para o lgbt que atacará qualquer ato homofóbico em nome de seus companheiros, no país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo.


E então essa geração chega a universidade e se depara com possíveis inimigos entre os colegas, entre os professores e mesmo a própria instituição. Isso não era assim há tempos atrás. Quando a militância era de classe, a universidade e o professor eram parceiros na luta anti-capitalista. Na universidade em que eu me formei nos anos 90, e certamente antes disso, os professores de esquerda eram porta-vozes da nossa indignação contra o sistema. Ainda que eles fossem da classe média, nossos inimigos eram os grandes empresários, as multinacionais, os latifundiários, a direita conservadora. Com a emergência dessa nova militância, o inimigo está em toda parte. Porque o preconceito é uma ignorância que  brota em todas as classes. 


"Você precisa rever seus conceitos". Estou aprendendo que preciso rever meus conceitos. Para poder chegar ao meu aluno. Precisamos rever nossa bibliografia (hoje os estudantes questionam se na ementa só tem autores homens e brancos), rever o que é e o que não é passível de debate intelectual em sala. E essa é, creio eu, uma questão que precisa ser aprofundada.


Debate intelectual ou Escuta ativa?


Os tempos atuais exigem o abandono do que se acreditava ser o uso livre da razão. Antes, se num debate intelectual, defendíamos pontos de vista diferentes, eu poderia te acusar de conservador, você me acusar de ingênuo, e tudo não passava de uma disputa intelectual muitas vezes saudável para a produção acadêmica. Hoje, no entanto, a defesa dos argumentos está intimamente imbricada com um sentimento profundo de muita dor. Então não há espaço para diálogo, para debates, para relativizações, problematizações das atitudes. Quando um militante dessa nova geração fala, o que ele espera é ser ouvido. É uma dor, dele e de seus irmãos, que precisa ser ouvida. A fala, mais do que um argumento intelectual, é um desabafo. Nessa fala, desabafam gerações, multidões. Contra-argumentar seria indelicado, no mínimo. É portanto uma fala, que pertence só a ele (pertencimento do grupo minoritário) e a mim cabe tão somente o lugar de escuta. Um lugar que pode ser melhor compreendido.


Na minha sala, quando estávamos em um debate sobre essas violências todas da contemporaneidade (metade de uma turma de primeiro período teve um familiar morto violentamente), eu trouxe a perspectiva gandhiana de um movimento de resistência pela não-violência. Eu achei que poderia somar. "Olha, lá na Índia, eles passaram pelas mesmas situações. Perseguição, violência racial, disputa nacional. E houve um grupo que, apesar de sofrer essas mesmas dores que você está me falando que seu grupo sente, optou por uma estratégia de não violência". Senti que ali na sala a gente estaria vivendo o debate Luther King versus Malcom X. Poderia ser um bom debate. Só que não. Além de não saberem nada sobre Luther King ou Malcom X, eu havia pulado uma etapa. No sentimento dos meus alunos, eu não estava ouvindo a dor deles. Eles não conseguiriam ouvir nada do que eu dissesse. Eu me tornei um inimigo. 


Lugar de fala. Cada um precisa reconhecer que fala, não de uma perspectiva universal (a Razão como acreditávamos antes), mas a partir de um lugar social. Muitos militantes trazem o clamor que só quem pode falar é quem vive na pele a dor da violência sentida até aqui. Me lembro anos atrás uma discussão em sala de aula terminar com um estudante me perguntando: "professor, o senhor já passou fome?" Situações assim são muito delicadas. E onde e como construir diálogos assim? Entendamos com a Djamila Ribeiro, autora do livro "O que é lugar de fala?" que um homem branco não pode representar a causa negra ou o coletivo de mulheres, ainda que possa e deva discutir a questão da sociedade patriarcal que é machista e racista, e procurar fazer a reflexão de como é estar como homem branco nessa cultura. Vai ser muito bom, por exemplo, que as mulheres ouçam os homens dizendo como é ser homem nessa sociedade, seus privilégios e também suas dores. Esse documentário, por exemplo, me representa: "A máscara em que você vive". E de outro lado vai ser revelador de uma face oculta da realidade que os grupos minoritários possam ser ouvidos a partir de suas vivências. Creio que assim, num espaço de partilha, as escutas possam se tornar potentes.


Nos movimentos atuais, as rodas de conversa são centradas na metodologia da partilha. O bastão da fala, é uma herança dos nativos americanos. Quem segura o bastão fala. O grupo acolhe. Não há debate. O pré-requisito é que quem vá em direção ao bastão, vá seguindo a voz de seu coração. Que a fala seja realmente significativa e que venha do coração. Assim conversam os sábios povos ancestrais que sobrevivem há milênios. Assim, criando espaços de escuta, de acolhimento e partilha de sentimentos, os novos movimentos militantes estão fortalecendo seus laços, na sinceridade e na sensibilidade da escuta da dor do outro que, de alguma forma, ressoa em todos na roda.


Será que além de rever nossas bibliografias (eu pessoalmente cheguei à filósofa Simone Weil graças a essa turma) precisaremos ampliar a escuta em sala de aula? Creio que precisamos rever as necessidades de nossos estudantes. Não é só um debate intelectual. É um olhar sobre o mundo no qual nossas vidas estão intensamente envolvidas. Alguém pode defender que sempre foi assim. E, de fato, os militantes de esquerda do passado não entendiam como as pessoas estavam passivamente caladas diante das ditaduras e do totalitarismo do capital. Mas hoje creio que a tensão está mais acentuada pela proximidade do inimigo.


Outra estratégia que podemos utilizar nas universidades é convidar os novos militantes a ampliar sua agenda de lutas. Aqui onde eu trabalho os professores vem atuando junto aos povos indígenas, aos grupos quilombolas e caiçaras. São outras identidades. Há outras minorias vítimas do sistema. Penso que as crianças sejam um desses grupos. Janusz Korczak no gueto de Varsóvia e no campo de concentração que o diga. Ele que escreveu: "Quando eu voltar a ser criança", foi um sensível pediatra e educador que levou a vida a lembrar aos adultos que se tornassem mais sensíveis para escutar as crianças. E soube morrer ao lado delas.

Novo paradigma para o psiquismo


A segunda novidade dessa nova geração de estudantes é que eles, jovens de 17 a 20 anos, estão relatando cotidianamente um mal estar psíquico digno de atenção. Sejam trabalhadores ou estudantes que se dediquem em tempo integral a faculdade: são diversos sintomas físicos, aliados ao cansaço, e a situações emocionais de tristeza e insatisfação nas relações. São eles os sobreviventes da medicalização da infância, e de uma forte tendência de diagnosticação da angústia por parte da medicina da mente. Nossos alunos nos contam de história de tda, tdah, depressão, pânico, crises de ansiedade, surtos, sem falar em tentativas, antigas e atuais, de suicídio. Nossos estudantes vivem esse mal estar, chegam a Universidade e precisam encontrar aqui a inspiração para seus projetos de vida e de carreira, o que poderá ser objeto de seus investimentos libidinais nos próximos anos. 


Não sabemos exatamente ainda qual a relação eles tiveram com a filosofia e a poesia na escola. Mas quando chegam nos cursos de humanas na universidade, muitos vão ter contato pela primeira vez com a metáfora da caverna de Platão. E com o olhar dos poetas. O que é o real? E começam a se questionar. E relativizam o senso comum do que é doença mental, o que é sanidade. E começam a rever suas próprias histórias de vida. 


Alguns alunos que se achavam loucos (e guardavam em segredo isso) começam a ver a realidade com outros olhos e estão investindo na potência de sua própria sensibilidade "diferente" dos demais. Com o tempo, e em negociação com seus psicólogos e psiquiatras estão deixando os medicamentos. A universidade está, de alguma forma, sendo terapêutica para eles. A troca que fazem com os colegas os fazem perceber que o que antes era visto como sintoma de doença psíquica, pode ser lido como um despertar espiritual. E começam a investir em práticas de equilíbrio físico-psíquico, e sobretudo, em filosofia, porque passam a refletir sobre a realidade e encontrar novos nichos de pessoas "diferentes": "seus olhos dizem que é uma cadeira mas a física quântica já mostrou que é vazio." O vazio, que até ontem era temido pelo antigo paradigma ("cabeça vazia oficina...", ou o vazio como vazio existencial) agora é percebido como lugar de criação e de infinitas possibilidades.


Profissão? Quantas?

Essa geração chega a universidade com a perspectiva de que além da carreira que estão buscando se formar ainda podem ter duas outras formações, ou mais. Nada é fixo em suas perspectivas de futuro, apesar da inevitável angústia que lhes traz essa incerteza. No entanto, não é só pela crise e incerteza econômica que estão incertos. É que já se deram conta realmente da impermanência das coisas e, uma vez que essa geração vai buscar uma coerência interna-externa para ser feliz, já pressente que na medida em que a jornada da vida for trazendo as transformações dentro de si, eles precisarão reconstruir suas vidas exteriores para estar alinhados consigo e com a vida. Cá entre nós, o modelo de universidade que temos já não serve mais. A ideia de formar para uma profissão, e para uma profissão só, está absolutamente obsoleta.

Na verdade essa nova geração está construindo espaços não escolarizados de saber, formação e economia solidária. Para atender a essa nova geração seria preciso mudar muito. O que não vamos conseguir fazer. A universidade seria nos moldes dos novos modelos que vem surgindo em ambientes não acadêmicos: espaço de vida e convívio (quem lava a louça do almoço hoje é você, professor?) destronando, na prática, toda forma de hierarquização que não cabe na cabeça dessa nova geração, estudos interdisciplinares (a matemática junto com a dança, com as constelações das estrelas, com as células do corpo humano e das plantas), participativos e lúdicos, ênfase na criação, muita arte e mística, muita sensibilidade, muita criação colaborativa, conexão com a natureza, conexão com a comunidade no entorno, etc.

De qualquer forma, vamos seguindo. Diante de desafios impossíveis ampliando a nossa escuta, de nossos estudantes e de nossas próprias impossibilidades. Creio que vamos ser melhores do que já fomos na medida em que assumirmos nossas responsabilidades. "Penso que a vida intelectual, longe de dar direito a privilégios, é em si mesma um privilégio quase terrível que exige, em contrapartida, responsabilidades terríveis." (Simone Weil)

Enquanto escrevia esse texto me lembrei de dois textos antigos. Um de um Carlos que falava de um tal de Paulo. E um de um Paulo que falou da escola mas bem que vale pra universidade também. Termino com a leitura deles, desejando que possamos nos inspirar para co-criar nossas formas de convívio.

"Paulo tinha fama de mentiroso. 
Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões da independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. 
A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. 
Desta vez, Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.
Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pala chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. 
Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: 
-Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia". 
Carlos Drummond de Andrade


"Escola é ... o lugar que se faz amigos. 

Não se trata só de prédios, salas, quadros, 
Programas, horários, conceitos... 
Escola é sobretudo, gente 
Gente que trabalha, que estuda 
Que alegra, se conhece, se estima. 
O Diretor é gente, 
O coordenador é gente, 
O professor é gente, 
O aluno é gente, 
Cada funcionário é gente. 
E a escola será cada vez melhor 
Na medida em que cada um se comporte como colega, amigo, irmão. 
Nada de “ilha cercada de gente por todos os lados” 
Nada de conviver com as pessoas e depois, 
Descobrir que não tem amizade a ninguém. 
Nada de ser como tijolo que forma a parede,
Indiferente, frio, só. 
Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar, 
É também criar laços de amizade,
É criar ambiente de camaradagem, 
É conviver, é se “amarrar nela”! 
Ora é lógico... 
Numa escola assim vai ser fácil!
Estudar, trabalhar, crescer, 
Fazer amigos, educar-se, ser feliz.
É por aqui que podemos começar a melhorar o mundo."

                                                          Paulo Freire

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Krishnamurti - texto para nossa prática nesse mês de julho

Que é ação?

Esta é a ultima palestra deste ano. A meu ver, quanto mais se observam as condições do mundo, tanto mais evidente se torna a necessidade de uma ação diferente. Observa-se no mundo, inclusive na Índia, tanta confusão, sofrimento, aflição, fome, um declínio geral. Estamos bem cônscios desse fato e também o conhecemos pela leitura dos jornais, revistas e livros. Mas tudo fica no nível intelectual, porque não parecemos capazes de fazer coisa alguma em relação a ele. Os entes humanos se veem no desespero, ha neles muito sofrimento e frustração e ao redor deles, caos. Quanto mais se observa e penetra esse fato — não intelectual nem verbalmente, porem estudando, observando, agindo, investigando, examinando — tanto melhor se pode ver como estão confusos os entes humanos. Estão completamente desorientados. Muitos julgam que não estão desorientados porque pertencem a determinado grupo ou circulo. Quanto mais se preparam, quanto mais executam certas coisas, quanto mais se entregam a atividades sociais, a isto ou aquilo, tanto maior a sua certeza de que o mundo será transformado gracas a sua insignificante ação.

O mundo se acha em guerra; e acredita-se que, pelo poder de uma certa prece, uns poucos indivíduos, reunidos e pronunciando determinadas palavras, serão capazes de resolver esta imensa questão que ha mais de 5 mil anos permanece sem solução. E continuam a repetir-se tais palavras, embora se saiba que jamais se porá fim a guerra dessa maneira. Cada um, pois, pertence a um certo grupo, a um certo partido politico, a uma seita religiosa, etc., e ai se deixa ficar, aferrado ao passado, ao que foi; nessa rede fica aprisionado. Podemos admitir — quando no-lo mostram — existe caos, declínio geral, deterioração, interior e exteriormente, e perceber que, com efeito, o homem esta desorientado. E sem procurarmos descobrir por que ele se acha nesse estado, por que há tanto caos e aflição, sem nos darmos ao trabalho de examinar profundamente esta questão, respondemos superficialmente, alegando que não estamos seguindo os mandamentos de Deus, ou que não amamos; damos respostas superficiais, perfeitamente banais, sem valor nenhum.

E, no decorrer destas palestras — se as estivestes escutando verdadeiramente — deve ter-vos ocorrido a pergunta: Por que tanta desordem, por que tanta confusão? Se investigardes bem profundamente, verificareis que o homem é indolente. O caos se originou da preguiça, da indiferença, da inércia do homem, do seu espírito de aceitação. Esta é a maneira mais fácil de viver: aceitar tudo, ajustar-se ao ambiente, as condições, a cultura em que se está vivendo; aceitar, pura e simplesmente. Essa aceitação gera uma tremenda indolência. Muito importa compreendermos que, como entes humanos, somos bem indolentes. Pensamos ter resolvido o problema do viver quando temos uma crença e dizemos: eu creio nisto ou naquilo. Tal crença se baseia essencialmente no medo e na incapacidade de resolvermos o problema do medo, fato esse indicativo de uma uma indolência de raízes muito profundas.

Observai-vos. Caímos num padrão de pensamento e de ação, onde nos deixamos ficar por ser muito mais comodo, pois já não temos necessidade de pensar; antes, talvez tenhamos refletido um pouco, mas agora não ha mais necessidade de fazê-lo. Isso proporciona ao individuo uma enorme satisfação como fazê-lo pensar que esta realizando um ótimo trabalho; ele não ousa questionar nada, porque isso e muito incomodo e perturbador. Não ousais questionar vossa religião, vossa comunidade, vossa crença, a estrutura social, o nacionalismo, a guerra; aceitais tudo. Observai-vos interiormente. Vede como sois indolente. O caos atual é devido a vossa indolência, porque desististes de questionar, desististes de duvidar; porque aceitais. Conscientes da terrível desordem existente tanto externa como internamente, esperamos que algum acontecimento exterior venha estabelecer a ordem, ou que algum líder ou guru possa ajudar-nos a sair dela (da desordem). Dessa maneira vivemos há seculos e séculos, sempre a contar que outro resolva os nossos problemas. Seguir outra pessoa é a essência da indolência. Chega uma certa pessoa que provavelmente refletiu um pouco, teve tais visões, e sabe fazer isto ou aquilo. Essa pessoa vos ensina o que deveis fazer e ficais plenamente satisfeito. O que desejamos verdadeiramente, neste mundo, é conforto, satisfação; queremos que outro nos mostre o que devemos fazer. Tudo isso revela a nossa indolência; não queremos pensar a fundo em nossos problemas, olha-los, dissipar todas as dificuldades. Esta indolência não só nos impede de questionar, de investigar e examinar, mas também de aplicar-nos a uma questão muito mais profunda: descobrir o que é ação. O mundo se acha num estado de caos, e nós numa grande aflição. Nenhuma das soluções, das doutrinas, das crenças, das "exibições" conhecidas pelo nome de meditação — nenhuma dessas coisas resolveu nada. E se tivéssemos a possibilidade de descobrir por nos mesmos o que é ação, trataríamos de agir, de fazer alguma coisa de vital, de enérgico, de dinâmico, para instituir uma mentalidade diferente, uma existência de diferente natureza.

Cumpre-nos, pois, examinar a questão da ação, não do que é ação correta e ação incorreta, porque se nos abeiramos da ação com essas ideias de "correto" e "incorreto", já estamos no caminho errado. Dir-nos-ão que isto é ação correta, aquilo ação incorreta, e nós, já inclinados a indolência, não trataremos de investigar a fundo a questão. Por exemplo, aceitamos como correta uma dada maneira de agir, porque a pessoa que a preconiza é um brilhante advogado; e portanto a adotamos. Mas o que nós vamos fazer nesta tarde é descobrir o que e ação. Tende em mente que não estamos discriminando entre ação correta e ação incorreta. Só há ação — nem correta, nem incorreta; nem ação em conformidade com a Bíblia, o Gita ou o Alcorão, ou em conformidade com o comunismo o socialismo, etc. Há só ação, ou seja, viver. Temos de descobrir a maneira de viver, o como viver — mas não um método; porque se seguimos um método, um sistema, uma norma, estamos dando mais alento a nossa inata indolência. Portanto, precisamos de uma mente muito esperta para não sermos apanhados nesta armadilha da indolência, na qual de muito bom grado nos deixamos cair.

Tende a bondade de escutar o que se está dizendo. Como o escutais? Quando estais escutando verdadeiramente, vós o fazeis a fim de compreender o que o orador esta tentando transmitir; compreender, e não discordar ou concordar. Para compreenderdes por vós mesmos uma coisa, tendes de escutar, de investigar, de examinar; não podeis aceitar nem dizer: "Espero que ele confirme o meu ponto de vista, que é correto". Tendes de escutar; e, evidentemente, esta é uma das coisas mais difíceis. A maioria de nós gosta de falar, de expressar-se. Andamos cheios de opiniões e ideias que não são nossas, porém de outrem, Aceitamos uma enorme quantidade de frases banais, as quais papagueamos e pensamos ter compreendido a vida. Estais, pois, escutando — não uma explicação, nem vossos preconceitos e idiossincrasias, nem as coisas que já sabeis; estais escutando a fim de compreender.

Para compreender, a mente deve estar perfeitamente quieta. Como já dissemos, para se compreender qualquer coisa dois estados são essenciais: tranqüilidade mental e atenção. Só dessa maneira podemos escutar seja nossa esposa, nossos filhos, nosso patrão, seja o grasnido dos corvos ou o grito de uma ave. É necessária a tranquilidade, é necessária a atenção; nesse estado podemos escutar. Estamos então ativos, já não somos indolentes, libertamo-nos do hábito de escutar parcialmente, de parcialmente concordar, de estar só parcialmente sérios e, portanto, nunca penetrando profundamente o que estamos escutando. Assim, se desejardes escutar verdadeiramente, escutai não só o que diz o orador, mas também os barulhos do mundo; escutai os clamores do coração humano, escutai o caos, escutai vossa própria aflição, vossa incerteza, vosso desespero. Se soubésseis escutar, serieis então capaz de resolver o problema. Se escutardes vossas agonias — se as tendes, como a maioria dos entes humanos — encontrareis a solução, estareis livre delas. Mas não sereis capaz de escutar nada, se disserdes: "A solução deve corresponder ao meu prazer, ao meu desejo" — pois nesse caso só estareis escutando a voz de vossos próprios desejos e de vosso prazer.

Aqui, pelo menos nesta tarde, tratai de escutar para compreender. Porque vamos examinar uma questão que requer abundante atenção, calma investigação, detido exame. Não é caso para dizerdes: "Mostrai-me o que devo fazer, e eu o farei". Visto que em torno de nós tudo está a desmoronar-se, faz-se necessária uma ação de especie totalmente diferente — não ação em concordância com fulano ou sicrano ou mesmo este orador. Vamos averiguar por nós mesmos o que é ação, como viver —  porque viver e agir. Tornamos o nosso viver terrivelmente caótico, cheio de aflições, e tão inane.

Para se descobrir o que e ação necessita-se de um alto grau de maturidade — maturidade independente do tempo e não como o amadurecer de um fruto na árvore, em seis meses. Se precisais de seis meses para amadurecer, já lançastes as sementes da desgraça, já plantastes a árvore do ódio e da violência, que conduzem a guerra. Portanto, tendes de amadurecer imediatamente; e isso acontecera se fordes capaz de escutar e, por conseguinte, aprender, O aprender não constitui um processo de adição. Aprender e adicionar para constituir conhecimento e agir com base nesse conhecimento — é isso o que estamos sempre fazendo. Temos experiências, crenças, pensamentos; e essas experiencias e pensamentos e ideias se convertem em conhecimento, o qual nos serve de base para a ação. Por conseguinte, não estamos aprendendo realmente: estamos apenas a adicionar, e adicionar, a adicionar. Temos adicionado a nós mesmos uma enorme soma de conhecimento nestes 2 milhões de anos; todavia, continuamos a fazer a guerra, a odiar; nunca um momento de paz e tranquilidade; nunca um findar do sofrimento. O conhecimento é necessário no terreno da tecnologia, da capacidade profissional. Mas, quando agis com base no conhecimento, que é ideia, já não estais aprendendo. A maturidade, portanto, nada tem que ver com o tempo e a evolução; vem ela quando há o ato de aprender. Só uma mente amadurecida é capaz de escutar, de estar muito atenta a tranquila. A mente sem madureza e que crê, que diz: "Isto é certo e aquilo errado" e age sem lógica.

Vamos, portanto, aprender juntos a respeito da ação. Vós ides pensar, escutar. Vamos fazê-o juntos, pois trata-se de vossa vida, e não da minha; trata-se de vossa vida, de vossa aflição, de vossa confusão. Tendes de descobrir o que e ação.

Que e ação? É fazer alguma coisa. Toda ação implica uma relação. Não há ação isolada. A açao, como ora a conhecemos, está em relação com a ideia. Decerto, a ideia e a execução dessa ideia é uma coisa excelente no domínio da tecnologia, mas se torna um empecilho quando se trata de compreender as relações. As relações se alteram constantemente. Vossa esposa ou vosso marido não e sempre a mesma pessoa. Mas, por causa de vossa indolência, de vosso desejo de conforto, segurança, dizeis: "Eu o conheço bem ou a conheço bem; ele ou ela é assim". Desse modo "fixastes" a pobre mulher ou o pobre homem. Vossas relações, pois, são de acordo com uma imagem ou ideia, Dessa imagem ou ideia do estado de relação provem a ação. Prestai atenção a isto, por favor. Não conhecemos outra especie de ação: "Eu creio", "Eu tenho princípios", "Isto é correto", "Aquilo é errado", "Assim é que deveria ser" — e agimos nesta conformidade. O homem é violento; sua violência se mostra na ambição, na competição, em brutal agressividade — reações próprias do animal — e também na chamada disciplina, que é repressão, etc. Dessa base é que agimos, e por isso há sempre conflito na ação.

Dizemos que ação deve obedecer a um padrão, distinguir o certo do errado, em conformidade com certos princípios e crenças, com a tradição, as influencias do ambiente e a cultura em que somos criados. A ação, portanto, conforme a vemos, e no que respeita a nossa vida, é regulada por uma determinada imagem, padrão ou fórmula. E tal fórmula, imagem ou ideia até hoje não resolveu nada, neste mundo, nem politica, nem religiosa, nem economicamente. Não resolveu nenhum de nossos problemas fundamentais. Entretanto, continuamos a insistir em que essa é a única maneira certa de agir. Dizemos: "Como podemos agir sem pensar, sem ter uma ideia, sem seguir, dia por dia, uma certa rotina?". E, assim, aceitamos o conflito como a norma da vida — o conflito resultante de nossas ações, de nossa maneira de vida, de nossas relações, de nossas ideias, de nossos pensamentos. Eis um fato incontestável; Tendes uma ideia, um principio, vossa crença no hinduísmo, etc., e estais agindo em conformidade com essa tradição, dentro dessa estrutura; desse modo, não pode deixar de haver conflito. A ideia, "o que deveria ser", difere do fato, o que é. Isto é muito simples. Dessa maneira temos vivido ha milênios. Ora, existe outra maneira de vida — uma vida de ação e de relações, porém sem conflito, ou seja, sem ideia?

 Prestai atenção. Vede primeiramente o problema. "Problema" — que significa esta palavra? Um desafio. Todos os desafios se tornam problemas, porque não sabemos "responder". Aqui está um problema, o problema do mundo, um desafio que vos e lançado, e não conheceis nenhuma outra maneira de "responder" a esse problema, senão a velha maneira: ajustamento, imitação, repetição, firmação de hábitos; e consoante essa maneira de vida repetente, imitativa, habitual, agis. Essa maneira "habitual" de vida é o que chamais "ação", e essa ação tem causado caos e sofrimentos inenarráveis na mente e no coração humanos.

Tal é o fato obvio. Dai podemos prosseguir. No digais depois que isto não é um fato, não vos iludais a este respeito. Se o analisardes, penetrando bem fundo em vós mesmos, vereis que ele pode ser formulado muito simplesmente: Tendes um prazer e desejais a repetição desse prazer (um prazer sexual ou de outra especie qualquer) e ides levando pela vida esse prazer, na memoria ou no pensamento; e tal prazer, tal pensamento, vos impele a ação; e nessa ação há conflito, há dor, ha aflição; estabeleceu-se o hábito e de acordo com ele agis.

Ora, existe outra maneira de viver, totalmente diferente, ou seja o viver que e ação? Quer dizer, "escutastes" muito cuidadosa e atentamente a maneira como tendes vivido ate hoje e sabeis de tudo o que ela envolve. Escutar integralmente significa ver, ouvir, examinar o problema em seu todo e não apenas em suas linhas gerais. Quando escutais o barulho daqueles corvos com a mente quieta, atenta, sem interpretar, sem condenar, sem resistir, isso significa estardes escutando integralmente. Estais escutando o som total: não o som produzido por um corvo. Do mesmo modo, se souberdes "escutar" integralmente o problema da ação, esse problema com que já estais bem familiarizado; se souberdes "escutar" a maneira como estais vivendo (procedendo da ideia para a ação), tereis então a energia necessária para escutar outras coisas. Mas, se não "escutastes" integralmente vossa atual maneira de agir, não tereis a energia necessária para seguir o que agora se vai dizer.

Afinal, para se compreender qualquer coisa necessita-se de energia, e para investigar uma coisa totalmente nova é necessária uma grande abundancia de energia. Mas para terdes essa energia e preciso que tenhais "escutado" — sem condenar nem aprovar — o velho padrão de vida. Precisais tê-lo "escutado" totalmente, quer dizer, tê-lo compreendido, ter compreendido a futilidade de viver dessa maneira. Após terdes "escutado" a futilidade de tal padrão, estareis livre dele. Tereis então percebido, não intelectualmente, porem profundamente, a inutilidade de viver daquela forma; tereis então a energia necessária ao investigar. Se não tiverdes tal energia, não podereis investigar. Isto é, negando aquilo que causou a presente aflição e conflito, a cujo respeito já falamos, essa própria negação e ação positiva.

A este respeito, vou estender-me um pouco mais. Perguntamos: "Existe outra especie de ação na qual não haja conflito, ação não iterativa, uma forma sempre repetida de prazer?" — Para averiguá-lo, temos de examinar esta questão; Que é o amor? Não vos ponhais num estado sentimental, emocional ou extático! Nós vamos investigar. O amor é, necessariamente, negativo. Ele não é pensamento, O amor nunca é contraditório — mas o pensamento é. O pensamento, que é uma reação da memoria, baseada nos instintos animais — pois esse é o mecanismo do pensar — é sempre contraditório. E sempre que ha uma ação oriunda do pensamento, tal ação, que e contraditória, acarreta conflito e aflição, E, ao investigardes, ao examinardes se existe alguma outra atividade não produtiva de dor, de ansiedade, de conflito, deveis achar-vos num estado de negação. Compreendeis? Para investigar, examinar, cumpre achar-vos num estado de negação; do contrario, não podeis examinar. Deveis achar-vos num estado de "não saber"; do contrario, como examinar?

O modo de vida a que estamos habituados e o que se chama o "modo positivo", porque podemos experimentá-lo, praticá-lo dia após dia, repetidamente, baseados na imitação, no hábito, no seguir, no obedecer, no sermos treinados pela sociedade ou por nós mesmos. Tudo isso é atividade positiva, onde há conflito e aflição. Continuai a escutar, por favor. E quando o negais (o modo de vida positivo), esse mesmo processo de negá-lo, o mesmo "processo" de lhe voltardes as costas, é um estado de negação, porquanto não sabeis o que vem depois. Isso, decerto, não é complicado. Intelectualmente, parecerá complicado; mas não e. Quando voltais as costas a uma coisa, o caso está liquidado.

Dizemos agora que o amor é negação total. Nós não sabemos o que ele significa. Não sabemos o que significa o amor. Sabemos o que é o prazer, o qual confundimos com o amor. Onde está o amor, aí não está o prazer. O prazer, é obvio, resulta do pensamento. Olho uma coisa beta; o pensamento entra em cena e começa a ocupar-se com ela, criando uma imagem. Observai isso em vós mesmos. Essa imagem vos proporciona um. enorme prazer, a proposito daquele espetáculo e do sentimento que provocou; e o pensamento dá a esse prazer nutrição e continuidade. E na vida familiar isso se chama "amor", mas nada tem que ver com o amor. Só se está interessado no prazer; e onde está o desejo de prazer, encontra-se a continuidade no tempo. "Escutai" bem isso. O amor, ao contrario, não tem continuidade, porque o amor não é prazer, E, para se compreender o que é o amor, para nos acharmos nesse estado, a negação é necessária — a rejeição do positivo. Certo? Podemos prosseguir?

Vede, senhores! quando dizeis que amais alguém — vossa esposa, vosso marido, vossos filhos, isso implica o que? Despojai-o de todas as palavras e sentimentos e emocionalismos e considerai objetivamente esse amor. Quando dizeis: "amo minha mulher, meu marido, meus filhos" — que é que isso implica? Essencialmente, prazer e segurança. Isto não é cinismo. São fatos. Se amáasseis deveras vossas esposas e vossos filhos (deveras, e não apenas para fruirdes o prazer de serdes membro de uma família, de um grupo restrito, insignificante, e terdes a possibilidade de vos satisfazerdes sexualmente e de dar largas ao vosso egotismo) — teríeis uma educação diferente; não faríeis vosso filho interessar-se unicamente na aquisição de aptidões técnicas, não o ajudaríeis apenas a passar nuns exames estúpidos, de pouca valia, a fim de obter um bom emprego; haveríeis de educa-lo para compreender o processo do viver em seu todo — não apenas uma parte, um segmento/um fragmento desta imensidade que é a vida. Se amasseis verdadeiramente o vosso filho, nunca haveria guerra; faríeis o necessário a esse respeito. Quer dizer, não teríeis nacionalidades, nem religiões separativas, nem castas — todos esses absurdos deixariam de existir.

Está visto, pois, que o pensamento não pode, em circunstancia alguma, criar um "estado de amor". O pensamento só e capaz de compreender o que é positivo, e não o que é negativo. isto é, como se pode, por meio do pensamento, descobrir o que é o amor? Impossível. Não se pode cultivar o amor. Não podeis dizer: "Exercito-me todos os dias em ser generoso, bondoso, delicado, cortês, em ter consideração para com outrem". isso não cria amor, pois e ainda ação positiva ditada pelo pensamento. Por conseguinte, só com a ausência do pensamento é possível compreender-se o que é "ser negativo"; nunca por meio do pensamento. O pensamento só e capaz de criar um padrão e de agir em conformidade com esse padrão ou formula. Por isso, há conflito. E para se descobrir uma maneira de viver isenta de todo e qualquer conflito, a todas as horas, deveis compreender esse amor que é negação total.

Senhores, como se pode amar, como pode haver amor, quando há atividade egocêntrica, seja na forma de virtude, de complacente respeitabilidade, seja na forma de ambição, de avidez, inveja, competição — tudo isso "processos" positivos de pensamento? Como amar, em tais condições? Impossível. Podeis afetar amor, empregar a palavra "amor", mostrar-vos muito emocional e sentimental, podeis ser muito leal; mas nada disso tem alguma coisa que ver com o amor. Para compreenderdes o que é o amor, tendes de compreender essa coisa positiva que se chama "pensar". Assim, em virtude dessa negação chamada "amor", vem uma ação da mais alta positividade porque não cria conflito. Afinal de contas, é isto o que todos desejamos: Viver num mundo onde não haja conflito, onde haja realmente paz, externa e internamente. Precisais de ter paz, senão sereis destruído, Só na paz pode a bondade florescer. Só na paz se mostra a Beleza. Se vossa mente está sendo torturada, se está ansiosa, se é invejosa, se é um campo de batalha, como podeis ver o que é belo? A beleza não é pensamento. Nenhuma coisa criada pelo pensamento é Beleza.

 Para descobrirdes uma ação não baseada em ideia, conceito, formula, deveis "escutar" toda aquela estrutura, vê-la, compreendê-la integralmente; pois por essa propria compreensão ficareis livre dela. Estará então a vossa mente num estado de negação, que não significa acrimonia ou cinismo; ela estará vendo a futilidade de viver daquela maneira e, portanto, porá fim a ela. Quando se põe fim a uma coisa, começa a surgir o novo. Mas nos temos medo de pôr fim ao velho, porque desejamos traduzir o novo em termos do velho. Percebeis? Se verifico que não amo realmente minha família — e isso significa não ser responsável por ela — estou então livre para conquistar outra mulher ou outro homem; isso, mais uma vez, é "processo" do pensamento. Por conseguinte, o pensamento não é a solução.

A pessoa pode ser muito inteligente e erudita; mas, para descobrir uma maneira de agir totalmente diferente, que traga felicidade a sua vida, ela deve compreender o inteiro mecanismo do pensar. E, pela própria compreensão do que é positivo — o pensamento — a pessoa entra numa dimensão diferente, de ação, a qual é, essencialmente, amor. Quer dizer: Para investigar, a pessoa deve ser livre; de contrario, não pode investigar, não pode examinar. E o caos e a confusão atualmente reinantes no mundo requerem um reexame completo, não segundo as vossas condições, as vossas fantasias, prazeres, idiossincrasias, ou os compromissos que assumistes. Tendes de pensar na questão de maneira inteiramente nova.

E o novo só pode surgir da negação e não da asserção positiva do que foi. E só pode tornar-se existente o novo quando ha aquele vazio total, que e o amor real. Descobrireis então, por vós mesmos, o que é a ação isenta de conflito em todo e qualquer momento; essa é a renovação de que a mente necessita. Só quando a mente se tiver renovado por meio do amor, o qual é a total negação (isenta de sentimentalismo, devoção ou obediência) da maneira de vida ditada pelo pensamento positivo, só então poderá ela construir um novo mundo, um novo estado de relação. E só então estará capacitada para ultrapassar todas as limitações e ingressar numa dimensão totalmente diferente.

Essa dimensão é uma coisa que não ha palavra, nem pensamento, nem experiencia que seja capaz de descobrir. Só quando se nega totalmente o passado, que é pensamento, só quando o negais totalmente em cada dia de vossa vida de modo que nunca haja um só momento de acumulação — só então podeis descobrir por vós mesmos uma dimensão onde se encontra a suprema felicidade, uma dimensão independente do tempo — uma coisa inatingível pelo pensamento humano.

Bombaim, 2 de marco de 1.966.